A primeira vez que Abigail subiu ao palco foi em 1922, com apenas 24 dias de vida, no colo da madrinha artista que a levou para viver o bebê da peça Manhãs de Sol. Mas a primeira vez que de fato interpretou foi anos depois, em 1941, na montagem La Locandiera. É bem verdade que estrear como atriz de teatro não foi uma escolha propriamente dela, mas dos pais, Procópio e Aída Ferreira. Uma escolha acertada, porque desde aquele dia Abigail nunca mais deixou de sentir as tábuas do tablado lhe tocarem os pés. E então virou Bibi. Bibi Ferreira (1922-2019), a grande dama do teatro brasileiro, que tem estas e outras de suas histórias narradas na recém-lançada biografia Bibi Ferreira - A Saga de uma Diva.
Quem assumiu a responsabilidade de traduzir os mais de 90 anos de carreira da artista em livro foi a jornalista e atriz gaúcha Jalusa Barcellos, amiga pessoal de Bibi. As duas se conheceram em meados dos anos 1970, no Rio de Janeiro, quando, em plena ditadura militar, Jalusa foi participar de uma reunião clandestina do Partido Comunista e quem lhe abriu a porta foi ninguém menos que Bibi Ferreira. A reunião em questão era na casa da atriz, à época casada com o dramaturgo Paulo Pontes. Foi aí que biógrafa e biografada se viram pela primeira vez, mas a proximidade só veio alguns anos depois, ao estrelarem juntas o musical Piaf - A Vida de uma Estrela da Canção.
Daí, seguiram-se quatro décadas de uma amizade interrompida somente em fevereiro de 2019, quando Bibi veio a falecer, envolvida com aquele que seria o seu último trabalho: a biografia. O livro começou a ser produzido em 2018, com o aval e a participação da atriz — antes, porém, ela pediu que Jalusa reparasse "uma grande injustiça que o teatro brasileiro faz" e fizesse uma biografia sobre seu pai, Procópio Ferreira. Cumpridos os requisitos, a gaúcha deu início ao trabalho de pesquisa que reuniu relatos de Bibi e de mais de cem entrevistados que conviveram com ela. Nomes como Fernanda Montenegro, Maria Bethânia, Antonio Fagundes, Jô Soares e dezenas de outros que contribuem com histórias espalhadas pelas mais de 600 páginas.
Páginas de uma biografia diferente. Uma "biografia afetiva", como fica avisado desde a capa e os primeiros parágrafos da obra. Porque foi escrita por uma amiga íntima de Bibi, é claro, mas também por um pedido da atriz, que disse a Jalusa, antes de iniciarem os trabalhos: "Não tenho mais saco nem memória para ficar levantando e reproduzindo 96 anos de vida. (...) Faça uma biografia afetiva". E foi o que ela fez.
— Acho que o que ela queria com isso era que as novas gerações, o teatro brasileiro e a cultura do país como um todo soubessem, pela história dela, de uma coisa que a gente sempre conversou muito: que não há possibilidade de existir uma grandeza artística daquelas se atrás não existir um imenso e igualmente gigantesco ser humano — diz a biógrafa.
— Só que tem uma coisa que eu falo inclusive no livro: se a biografia é afetiva, não me peçam isenção e não me peçam para dizer alguma coisa que eu não considero verdadeira — completa.
E esse é justamente o charme da obra: sua autora não é imparcial. As histórias contadas pelos entrevistados, e até mesmo por Bibi, misturam-se com a visão pessoal da biógrafa, que também recorre à própria memória para narrar causos vividos com a amiga. E transpõe nas páginas coisas que só mesmo uma biógrafa que é também confidente particular de sua biografada poderia conseguir. Por exemplo, uma entrevista com Claudina, espécie de alter ego cômico que Bibi costumava interpretar apenas na presença de pessoas íntimas.
No capítulo cinco da biografia, há uma entrevista completa com a personagem que, diferentemente da criadora e intérprete então com 96 anos, é uma adolescente rica e mimada que mora em Paris e odeia teatro. O encontro com Claudina foi na casa de Bibi, pouco tempo antes de a atriz morrer. Ou seja, foi provavelmente a última vez que ela interpretou uma personagem. Para Jalusa, uma prova de que, mesmo com a saúde já bastante fragilizada, a amiga nunca perdeu seu senso de humor e sua capacidade artística:
— Nos nossos últimos encontros, ela já estava se despedindo. Falava cada vez menos, mas nunca se recusou a responder alguma coisa e nunca perdeu o senso de humor. Por exemplo, quando perguntei "Você namorou a primeira vez foi com quantos anos mesmo?", ela, com 96 anos já feitos, respondeu: "Você está querendo saber quando que eu dei pela primeira vez? Não foi com o primeiro namorado. Anota aí". E me contou tudo. Quer dizer, ela nunca perdeu o humor e a clareza de que tinha 96 anos e estava contando a sua história.
Essa história contada no livro, como fica evidente, ultrapassa o escopo da vida profissional. Há coisas ali que quase ninguém sabe sobre Bibi Ferreira. Por exemplo, que a atriz escondeu o ex-presidente da Angola Agostinho Neto na residência onde vivia em Portugal quando ele, à época um revolucionário que lutava pela independência do país africano, estava sendo perseguido pelo regime salazarista.
Ou que, escondido no closet do apartamento de Bibi e Paulo Pontes na Rua Rodolfo Dantas, em Copacabana, no Rio de Janeiro, o sociólogo Luiz Werneck Vianna escapou da ditadura militar brasileira. Segundo Jalusa, é dele um dos depoimentos mais emocionantes do livro.
— Por conta de toda aquela repressão da época, de a gente não poder falar sobre essas coisas, ele diz que nunca teve a oportunidade de agradecer publicamente a Bibi por ter ajudado a salvar a vida dele durante a ditadura. Eu acho que é isso uma biografia afetiva, sabe? — comenta a autora.
Por ora, este e outros depoimentos vêm sendo lidos apenas por público limitado, com distribuição gratuita. Isso porque a biografia teve como mecenas o Centro Cultural Cesgranrio, da Fundação Cesgranrio, patrocinadora que possibilitou a produção do livro mas que, por ser uma entidade sem fins lucrativos, não pode promover sua comercialização.
A expectativa de Jalusa é de que, em breve, seja autorizado o lançamento de uma segunda edição com fins comerciais. O que ela quer é que o grande público possa saber quem era sua amiga Abigail, a mulher por trás da diva Bibi Ferreira.