"Viver é melhor que sonhar", sentenciou Belchior na composição Como Nossos Pais. Hugo concorda. Mas, ultimamente, a vida real do jovem cineasta tem sido tão surreal que mais parece a esquete de algum dos sonhos insanos que costuma ter a cada cochilo e que depois lhe servem de inspiração para fazer filmes. Ele é a figura central de O Caderno dos Sonhos de Hugo Drummond (Diadorim), terceiro romance lançado por Carlos Gerbase, ex-Replicantes, escritor, professor, pesquisador, colunista de GZH e, assim como seu personagem, cineasta, sócio da Prana Filmes.
A trajetória dos dois no cinema é bastante distinta. Enquanto o autor tem seu nome marcado no audiovisual gaúcho, Hugo, até pouco antes, era um instalador de câmeras de segurança da região da Serra que jamais havia pensado em fazer um filme. Com o incentivo e a orientação da esposa, a pragmática Virgínia, e de um produtor francês que conhece ao acaso no Festival de Cinema de Gramado, resolve levar às telas um thriller de baixo orçamento que acaba sendo premiado em Cannes.
Hugo está com moral. E é assim que ele ruma a Porto Alegre para participar de um encontro de produtores, ciente de que pode negociar as melhores condições para rodar a continuação de seu primeiro filme. Só que, desde que cruza a passarela sobre a rodoviária da Capital, tudo acontece de forma estranha. A começar pelo fato de ele sequer acreditar no roteiro que está prestes a apresentar, cuidadosamente alterado pelos parceiros de produção para parecer "mais comercial" – e, consequentemente, mais distante daquilo que ele originalmente escreveu. Aí mora um ponto importante da relação de Gerbase com o personagem, a quem o autor define como "meio banana".
— Ele não é parecido comigo. Porque eu, quando quero fazer alguma coisa, tenho muita disposição para realmente fazer. Não fico perguntando muito. Ouço opiniões, claro, mas acho que não me deixaria guiar tanto quanto o Hugo. Quando vou fazer um filme, não abro mão da autoria — diz, explicando que, além da profissão, os dois somente compartilham o hábito de sonhar.
No caso de Hugo, sonhos e realidade se tornam cada vez mais inverossímeis assim que chega ao local do evento – o prédio que um dia abrigou o Majestic Hotel e, de uma forma que ele não consegue entender, voltou a ser hotel apenas para recebê-lo. É lá que conhece os personagens que revelam a conotação surrealista dada por Gerbase: um produtor que muda sua aparência de acordo com os ambientes que frequenta, a misteriosa secretária dele – que ora se mostra prestativa demais, ora como se prestes a cometer algum crime hediondo – e a recepcionista do hotel que não deveria mais ser hotel, que parece ter saído diretamente do roteiro de algum filme B sobre espionagem.
Rascunhos
Já o autor sabe bem de onde tudo isso surgiu. O enredo inicial veio também de um sonho, em meados de 2019. Assim como Hugo faria, Gerbase anotou a ideia, pensando em um dia transformá-la em filme. Chegou até a escrever uma escaleta (espécie de rascunho do roteiro).
Quando o isolamento imposto pela pandemia tornou seus dias mais monótonos, ele resolveu voltar à história, decidido que, em vez de filme, faria dela um romance.
— Sempre que penso em um filme, penso no seu orçamento e nas suas reais possibilidades de acontecer. O cinema é a arte do possível. No Brasil, então, nem se fala. Na literatura é o contrário, o limite é a tua imaginação e o teu talento para transformá-la em texto – diz o autor, que contou com o auxílio de Julia Dantas e Caroline Joanello, da empresa especializada em edição de originais Baubo.
Ainda assim, ele não descarta a possibilidade de Hugo migrar para a tela. O livro, inclusive, conta com um booktrailer, disponível no canal de Gerbase no YouTube. Já quando questionado sobre as chances de o personagem ganhar uma continuação ainda na literatura – e, quem sabe, tornar-se mais assertivo e menos "banana" –, devolve com uma pergunta:
— Tu achas que vale a pena?
Eu acho que sim.