— Se eu soubesse que receberia tanto carinho, teria feito 90 anos antes — brinca Zuenir Ventura, entre um gargarejo e outro com chá de gengibre, para conseguir ter voz para atender a todos os telefonemas de parabenização e, também, de entrevistas. E são muitos.
Completando nove décadas de vida nesta terça-feira (1º), o jornalista, escritor, colunista de O Globo e imortal da Academia Brasileira de Letras se diz mais feliz do que na adolescência e celebra ter chegado a essa idade com saúde, rodeado da família e dos amigos. Para ele, a velhice só é ruim quando vem acompanhada de doença. Como não é seu caso, volta e meia se pega cantarolando Gracias a la Vida, de Violeta Parra, conhecida também na voz de Mercedes Sosa.
Para marcar o começo da nova década, Zuenir volta a uma obra pela qual sente muito carinho, Minhas Histórias dos Outros, trazendo-a para 2021, revista e ampliada. O escritor revela que foi prazeroso retornar às histórias relatadas no livro, lançado originalmente em 2005. Mas engana-se quem acha que é uma autobiografia. O escritor faz questão de dizer que é uma “alterbiografia”, ou seja, até conta sua história, mas a partir das histórias alheias.
Na publicação, Zuenir relata sua trajetória de 70 anos como jornalista, desde quando entrou na profissão, meio sem querer, até episódios marcantes com nomes como Nelson Rodrigues e Glauber Rocha e personagens anônimos. Além disso, acrescenta à obra a sua histórica entrevista com o reservado Carlos Drummond de Andrade.
— Na época, quando a divulgadora da editora ligou oferecendo a entrevista, achei que era trote. Só acreditei mesmo quando cheguei lá. E nem perguntei o motivo, vai que ele desistisse — lembra o jornalista.
Minhas Histórias dos Outros foi relançado pela Companhia das Letras (194 páginas, R$ 59,90) e traz um novo olhar para as situações narradas por Zuenir, bem como o acréscimo de outras. Proporcionou, também, a oportunidade de contar um novo final para um dos episódios mais marcantes de sua vida.
Foi durante a cobertura do assassinato do ambientalista Chico Mendes, no final da década de 1980, que o jornalista se viu em uma situação que, segundo os manuais da profissão, nunca deve ocorrer: interferir na história. Porém, uma vida estava em jogo: a de Genésio Ferreira da Silva, principal testemunha do assassinato. Para evitar uma queima de arquivo, o escritor levou o jovem de 13 anos para a sua casa, no Rio de Janeiro, ficando com a sua tutela até que completasse a maioridade. No entanto, houve um choque cultural muito grande. Conforme Zuenir, foram anos difíceis, pois o adolescente tinha problemas com álcool e nunca se adaptou ao novo endereço, voltando para sua terra natal quando completou 21 anos.
— Essa história, na edição de 2005, terminava com um gosto amargo de um fracasso meu, com Genésio indo embora. Porém, pouco antes de completar essa ampliação do livro, recebi um telefonema dele, dizendo que está noivo, vai se casar, parou de beber e até lançou um livro. Então, essa história, agora, tem final feliz.
Crises
Autor de obras como 1968: O Ano que Não Terminou e Cidade Partida, Zuenir diz que, mesmo com o passar dos anos, muito do que foi relatado nas publicações segue presente no Brasil de 2021. Para ele, o que aconteceu no final da década de 1960, com toda uma geração que “se atirou de corpo e alma” em busca de liberdade e democracia, deixou um legado que permanece vivo.
Porém, ao traçar um paralelo entre o Brasil de hoje com o de Cidade Partida, demonstra tristeza, uma vez que ele acredita que a “cidade continua e seguirá partida” enquanto a política de guerra que prevalece no Rio seguir:
— Não tem essa de bala perdida. Todas têm endereço certo. Realizei cobertura de uma pós-chacina e achei que seria a última. Mas elas continuam, como vimos em Jacarezinho, e vão seguir enquanto nada for feito para mudar isso.
Para Zuenir, este é o pior momento da história do Brasil, devido ao acúmulo de crises – na saúde, na política, na economia e na ética. Revela que só saiu de casa, nos últimos 14 meses, para ir ao médico e ao dentista.
— Vivi muitas crises, como a morte de Getúlio Vargas, a ditadura militar, fui preso, vi renúncia de presidente, golpe, mas nunca presenciei o que estamos passando hoje. Esta é a era do cinismo, com negacionismo e deboche pela vida humana. E só por causa disso, de toda essa situação que o Brasil vive, que a minha felicidade, aos 90 anos, não é completa — finaliza.