Mudar a perspectiva de uma história bastante conhecida é um recurso narrativo também bastante conhecido. Para além de devolver frescor, convida, obviamente, a estendermos um outro olhar a personagens com os quais já estamos familiarizados. A escritora policial P. D. James, por exemplo, escalou o elenco de Orgulho e Preconceito em Morte em Pemberley, que se passa alguns anos depois dos eventos descritos no clássico romance de Jane Austen.
O dramaturgo Tom Stoppard reencenou Hamlet, de Shakespeare, pelo ponto de vista de dois coadjuvantes em Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos. A Disney recriou A Bela Adormecida no filme Malévola, transformando a bruxa em uma espécie de heroína.
Agora, chega ao Brasil Golias (editora Todavia, 96 páginas, R$ 54,90), história em quadrinhos originalmente publicada em 2012 que reconta a célebre parábola da Bíblia sobre Davi, o rapaz judeu que, com uma funda e uma pedra, derrubou o gigantesco campeão dos filisteus. O cartunista escocês Tom Gauld decidiu ir para o front oposto: na sua obra, o bruto guerreiro é retratado como um burocrata pacífico, muito mais interessado em tarefas administrativas do que em atividades como patrulha e combate. Devido a seu tamanho – reza a lenda que media entre 2,50 e três metros –, acaba escolhido pelo rei para, munido de armadura, lança, espada e escudo, desafiar os israelitas do outro lado do vale.
Com sua arte de estilo minimalista e seu senso de humor agridoce, Gauld transmuta o vilão bíblico em um herói tragicômico. À pegada existencialista de Golias, o autor acrescenta uma síntese sobre os absurdos da guerra.
"A Bíblia trata Golias apenas como um símbolo, não como um ser humano", diz cartunista
Celebrizado pelos cartuns que produz para os jornais The Guardian e The New York Times e para as revistas The New Yorker (na qual também assina capas) e New Scientist, o escocês, em 2018, ganhou o prêmio Eisner (o principal do mercado norte-americano) na categoria livro de humor, com Baking with Kafka. No primeiro semestre de 2020, a editora Todavia deve lançar outra obra sua, Mooncop, sobre um solitário policial que patrulha a Lua. Por e-mail, Gauld concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
Por que recontar a história de Davi e Golias? O que há de fascinante nela?
Achei que seria interessante pegar uma história bem conhecida e recontá-la a partir de outro ponto de vista. Pensei em fazer um conto de fadas ou uma peça shakespeariana, mas nada me pareceu realmente bom. Então desenhei uma pequena história em quadrinhos sobre Noé e a arca e isso me levou a ponderar sobre outras passagens bíblicas. Logo que li o texto bíblico real sobre Davi e Golias, eu soube que seria uma história interessante para considerar a partir do outro lado. Uma vez que você se dá conta de que Davi tinha um Deus todo-poderoso ao seu lado, Golias começa a parecer o verdadeiro azarão, e fica difícil não simpatizar com ele.
Golias sempre foi visto como um símbolo de brutalidade. Na sua versão, ele surge como um burocrata bastante pacífico. Por que escolheu essa abordagem?
Isso é exatamente o que Golias é na Bíblia: um símbolo. Ele é pobremente tratado como um ser humano em absoluto e quase completamente descrito em medidas: como ele é alto, quanto pesa sua armadura. Ele é realmente apenas um obstáculo para Davi (com a ajuda de Deus) superar. O que me abriu muito espaço para imaginar minha própria versão de Golias sem contradizer, de fato, o texto original. Suponho que fazê-lo como um burocrata pacato vai em direção completamente oposta à da Bíblia.
O gigante filisteu é uma pessoa que paga o preço por parecer ser algo que não é, certo? Na vida real, fazemos isso, julgar pela aparência, o tempo todo, não?
Sim, ele também paga o preço por ser diferente.
Eu estava parcialmente inspirado por um romance chamado O Gigante O'Brien, de Hilary Mantel, que é uma versão ficcional da vida de Charles Byrne, um gigante real que viveu no século 18. Nas duas histórias, as pessoas estão mais interessadas no gigante como um símbolo do que como uma pessoa real.
O Times definiu Golias como "uma meditação sutil sobre o absurdo da guerra", que apanha um relutante protagonista e o coloca na linha de fogo. O que você pensa sobre as guerras? Todas são absurdas?
Suponho que elas são absurdas, embora algumas sejam mais absurdas do que outras.
Eu realmente só penso nas guerras por meio da ficção, mas na maioria das histórias que eu lembro existe uma desconexão entre as narrativas grandiosas das nações, exércitos e líderes e a experiência confusa dos verdadeiros soldados.
Você acredita em Deus? E em destino?
Não acredito em nenhum dos dois na vida real. Em Golias, queria que Deus fosse ambíguo: você pode ler a história e acreditar que Davi teve um Deus útil e real ao seu lado, ou você pode acreditar que ele apenas tem um destino forte que o torna poderoso. Eu não tinha considerado realmente até agora, mas é provável que haja muita coisa que uma pessoa perspicaz poderia dizer sobre o modo em que os personagens, nas histórias, são, de certa forma, sempre enredados para um destino específico, decidido pelo seu autor. O leitor está ciente desde o início do meu Golias que esse está fadado a morrer, mas eu desejava que, ao longo do caminho, ele começasse a esperar que, desta vez, algo diferente acontecesse.
Que outros personagens ou histórias da Bíblia poderiam ou deveriam ganhar versões com diferentes perspectivas?
A Bíblia é particularmente interessante para esse tipo de reinterpretação. Uma grande parte da boa ficção é tão bem-feita e autocontida que nada mais há para se dizer, mas a Bíblia é cheia de contradições, falhas, confusões e fios perdidos entre as histórias. Gostei do seriado Good Omens, recentemente, que tem muitas gozações com anjos e demônios. Gostaria de ver uma história a partir da perspectiva de José, o pai de Jesus (ou seria seu padrasto?).
Seu livro transforma um vilão bíblico em um sujeito com o qual é praticamente impossível não simpatizar. Todos os vilões são passíveis dessa humanização?
Depende do tipo de história. Não acho que O Senhor dos Anéis seria melhor se entendêssemos que Sauron teve uma infância difícil. Li uma citação de alguém, que foi algo como "ninguém é um vilão em sua própria mente", o que acho que provavelmente é verdadeiro na vida real e em muito da boa arte.
E na vida real, quem mereceria esse tipo de olhar? Donald Trump, por exemplo? Algum ditador?
Certamente você pode escrever uma versão de Trump como um palhaço trágico, e um bom escritor poderia fazer-nos simpatizar com ele até certo ponto. Um dos bons aspectos da arte é que ela pode pegar alguém com o qual discordamos completamente, ou até desprezamos, e humanizá-lo ou mostrar o mundo a partir do seu ponto de vista. Tentar entender alguém não é o mesmo que concordar com ele.
Em uma entrevista ao Comics Journal, ao justificar seu estilo de contar histórias, com gaps para o leitor preencher e/ou pensar, você citou Billy Wilder: "Se você deixar o público somar dois mais dois, ele vai amá-lo para sempre. O que mais você aprendeu com o célebre cineasta?
Assisti a alguns filmes de Billy Wilder e gostei deles, e, a partir de um punhado de entrevistas que li, tenho a impressão de que ele era um cara interessante, mas não conheço realmente seu trabalho tão bem. Eu apenas curti a declaração.
Pode falar um pouco sobre Mooncop, que também será publicado no Brasil?
A ideia básica veio quando vi um brinquedo dos anos 1960, um carro de polícia lunar dirigido por um astronauta. Fez eu pensar em um tempo no qual as pessoas não apenas imaginavam que iríamos colonizar a Lua, mas que isso seria um sucesso a ponto de precisarmos da força policial para manter a ordem por lá. Mas a caixa em que o brinquedo veio mostrava uma Lua totalmente vazia. Imediatamente, imaginei um policial patrulhando a paisagem solitária de uma Lua deserta, e a história cresceu a partir daí. Eu queria pegar alguns dos divertidos clichês da ficção científica e usá-los em uma história que não fosse uma aventura ou um thriller (como muitas das histórias sci-fi são), mas alguma coisa mais preocupada com os problemas ordinários e cotidianos que poderiam estar ocorrendo na Lua.
Literatura e ciência são temas frequentes em seus cartuns. Ao mesmo tempo em que você os coloca em evidência, parece tentar desmistificá-los. Na era das fake news e da instantaneidade não raro fútil das redes sociais, o mundo está precisando de acesso à cultura e ao conhecimento?
Sim, com toda a certeza. Gosto muito de ler e pensar em como nós e tudo estaria melhor se passássemos mais tempo em romances e menos tempo na mídia social. Mas não desejo que a literatura seja colocada em um pedestal ou encerrada seguramente em uma caixa de vidro: você pode amar algo e também gracejar sobre suas excentricidades e imperfeições. Isso é assim com a ciência também: minhas piadas absurdas surgem de um local de profundo respeito pela ciência e pelos cientistas.