Entre as vertentes da literatura brasileira contemporânea, quatro têm se destacado nos últimos anos: a temática da cidade, em que personagens aparecem em dissintonia com o local onde vivem; a ditadura militar e as suas consequências; imigração e exílio; e a autoficção.
Essas tendências aparecem em O Quarto Branco, romance de estreia de Gabriela Aguerre, jornalista uruguaia que nasceu em Montevidéu, em 1974, e veio para o Brasil ainda criança. A protagonista da obra é Gloria, uma mulher na faixa dos 40 anos e também uruguaia. Mudou-se para São Paulo com os pais em meio à ditadura no seu país, que durou de 1973 a 1985.
Assim como a autora, Gloria foi criada longe de sua pátria — neste sentido, o livro flerta com a autoficção, forma que combina, como o nome sugere, dois estilos aparentemente contraditórios: a autobiografia e a ficção.
Demitida do trabalho e com o pai hospitalizado, Gloria, após sofrer um aborto espontâneo, descobre que não poderá mais ter filhos. Decide viajar para o Uruguai da infância em busca de respostas para a sua crise. A capital paulista e Montevidéu surgem como personagens do romance. Reflete Gloria sobre a megalópole brasileira:
“No fim do dia, ou seja, logo seguirão todos juntos, como se abduzidos para a bolha própria, a do preparar o jantar, a de servir o jantar ou comê-lo em pé, porque há mais que ser feito, talvez superar o tédio juntos, talvez um programa de TV. Olha lá vai passando”
O parágrafo, assim como em outros momentos do livro, termina sem ponto final, como um pensamento incompleto de Gloria, para que o leitor preencha com suas vivências, se assim o desejar.
Montevidéu aparece como sinônimo de saudade e de exílio. Afirma a protagonista:
"Sempre o mesmo, com cartas da minha mãe, que escrevia para Tita pelo menos a cada quinze dias contando como era morar no novo país, como era a vida no exílio, palavra que não se usava e não se sentia dentro, as dificuldades passando e voltando, essa conversa com a mãe que era tanto mais fluida quanto mais era escrita, até capítulos de telenovela eram narrados e enviados pelo correio, por episódios".
Na viagem de retorno para a capital uruguaia, Gloria vai enfrentar seus traumas, representados na figura de Gaia, a irmã gêmea que morreu com poucas semanas de vida, mas cuja história continua a assombrá-la. É em suas andanças por Montevidéu e pelo interior do Uruguai que a personagem escancara seus medos, descreve a saudade de seu país e resgata, por meio de um relato íntimo, a sua história particular, ajudando o leitor a entender, política e socialmente, aspectos do país vizinho.
O Quarto Branco, com a escrita ao mesmo tempo delicada e potente de Gabriela, dialoga com outra obra importante da literatura brasileira contemporânea, A Resistência, de Juliás Fuks, eleito o livro de ficção de 2016 pelo Prêmio Jabuti, que tem também como temas centrais o exílio e as relações familiares de imigrantes e seus descendentes no Brasil. Gabriela apresenta outra faceta desses assuntos, a partir de um olhar feminino, no qual questões como a maternidade ganham relevância.
O QUARTO BRANCO
De Gabriela Aguerre
Editora Todavia, 120 páginas, R$ 49,90.
Cotação: bom