O premiado José Eduardo Agualusa já apontou que a prosa de Ricardo Adolfo tem uma "ironia feroz". Já Valter Hugo Mãe foi mais longe: afirmou que “a nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente” por este escritor, que atualmente conta 44 anos.
Adolfo tem seis livros publicados, com traduções para diferentes idiomas da Europa, mas só agora estreia no Brasil, com Maria dos Canos Serrados, publicado originalmente em 2013. O volume chega ao país pela editora gaúcha Dublinense, que tem trabalhado no mercado nacional autores portugueses inventivos, como José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e David Machado, por exemplo. Longe da lírica sentimental de Peixoto e do experimentalismo às vezes hermético de Tavares, Adolfo lembra mais o Machado de Índice Médio de Felicidade, pelo menos nesse Maria dos Canos Serrados. Sem deixar de lado o humor, os dois livros abordam a crise econômica que abateu Portugal nos últimos anos, mas o primeiro tem um tom de road movie, já o segundo lembra mais um filme de vingança dirigido por Quentin Tarantino.
O romance é narrado por meio de cartas e mensagens que a Maria do título escreve para o namorado, um gigolô por quem está apaixonada. Quando não está vivendo aventuras sexuais com o parceiro ou praticando a mira em um mal frequentado clube de tiro, a protagonista trabalha em uma fábrica prestes a fechar. Com a falência do lugar de trabalho, Maria e seus colegas não deixam de frequentar o local diariamente, pois um movimento sindical se organiza para tomar as rédeas da empresa.
Os momentos de ócio dos trabalhadores são responsáveis por alguns dos melhores trechos do livro. É quando percebemos que a narradora, embora esteja em uma situação financeira tão ruim como a de seus colegas, não se identifica com eles, a quem se refere como “os pobres”. Maria não tem lá muita confiança no movimento, mas na falta do que fazer frequenta assembleias e reuniões, esperando que um dia receba os salários que a empresa ficou lhe devendo. Há às vezes um tom de caricatura sobre a ocupação da fábrica: “No último plenário, ainda confirmamos com o grande líder se não era preciso termos trabalho para podermos reclamar a falta de pagamento. Disse-nos que isso eram detalhes técnicos irrelevantes e que o que interessava eram os direitos dos trabalhadores. Mas quem não tem trabalho tem direitos sobre o trabalho que não tem?”.
Além da inserção no movimento sindical, Maria também tenta uma aventura pelo mundo do crime, com uma espingarda de caça Baikal com os canos serrados.
No sujo e veloz português de Maria, trata-se de "uma puta de uma fusca linda de lamber".
Amor, sexo, greve e violência são soluções nas quais Maria aposta para sair de sua crise pessoal. São saídas que muitos portugueses também devem ter tomado para si depois que a recessão financeira começou a se disseminar pelo país. É por isso que Maria dos Canos Serrados pode ser lido como um retrato de Portugal na atualidade, mas também como um livro universal, sobre caminhos que se fecham e esperanças que se abrem em um momento de crise.
Maria dos Canos Serrados
De Ricardo Aldolfo
Dublinense, 224 páginas, R$ 39,90. Cotação: 4 de 5 estrelas.