Poucos meses antes de ser assassinado em 1988, o seringueiro, ambientalista, ativista e sindicalista Chico Mendes concedeu uma entrevista de seis horas. Quem conduzia a conversa era a atriz e ambientalista Lucélia Santos (conhecida, entre outros trabalhos, como as protagonistas das telenovelas Escrava Isaura e Sinhá Moça). A gravação ficou guardada por mais de 30 anos e foi revelada apenas no espetáculo Vozes da Floresta. A peça chega neste final de semana a Porto Alegre, com apresentações no sábado, às 20h, e domingo, às 18h, no Theatro São Pedro. Os ingressos estão à venda no site e na bilheteria do teatro, a partir de R$ 50.
O espetáculo, com texto de Zezé Weiss, encena a memória da luta de Chico pelos seringueiros da Amazônia, cuja sobrevivência depende da preservação da floresta e das seringueiras. Há mais de três décadas, Lucélia, atualmente com 65 anos, esteve no Acre com o ativista, participou da resistência dos extrativistas e o acompanhou até a época do assassinato, que ocorreria em meio ano.
— Guardei esse material por 34 anos, porque eu nunca consegui nem mesmo ouvir essa fita. A morte do Chico foi uma coisa muito precipitada, violenta — conta a atriz, que também é responsável pela concepção e direção da peça.
Em Vozes da Floresta, trechos da conversa inédita são usados para retratar o ápice do conflito entre seringueiros e ruralistas. A voz de Chico guia o espetáculo em um documentário. Ele é o fio condutor no relato da história do movimento de resistência dos seringueiros acreanos — que também é, em essência, a sua própria história.
Paralelamente, no palco, a luta é contada por meio do olhar de três mulheres da resistência, interpretadas por Lucélia: Valdiza Alencar, seringueira e a primeira mulher a criar um sindicato no Acre; Cecília Mendes, tia de Chico e matriarca do seringal, ponto fulcral do assassinato, que foi o ápice do conflito; e a própria Lucélia, ao chegar a Xapuri em 1988. Ao lado da atriz, Francisco Carvalho assume as intervenções masculinas na peça, como jagunço, marido da seringueira, sindicalista, entre outras.
A motivação para resgatar o material surgiu no ano passado, por conta de tragédias socioambientais brasileiras — sobretudo as queimadas na Amazônia, que alcançaram picos históricos. Em 2022, 3 mil campos de futebol foram destruídos por dia, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
— Eu achei que era fundamental reacender o debate, e um pouco por meio da memória da luta de resistência dos povos acreanos em defesa da floresta. Aí comecei o trabalho que foi reconstituir as condições da luta através da linguagem teatral e audiovisual — explica Lucélia.
O embarque na luta
A atriz recorda que o convite para ir até o Acre partiu de Chico, quando se conheceram em uma palestra dele para o Partido Verde, no Rio de Janeiro, sobre o projeto de reservas extrativistas.
— Ouvi o discurso sobre o projeto, que é grandioso, e está aí até hoje. Se existe ainda floresta preservada e áreas protegidas, é graças a ele — lembra.
Havia muita urgência, pois ele "sabia que ia morrer", de acordo com a artista. As circunstâncias que ela encontrou ao chegar em Xapuri foram de "violência e muita tensão", pois ele já estava ameaçado de morte.
— Eu percebi isso logo que cheguei, e a gente começou a conversar, comecei a ver claramente in loco, éramos cercados o tempo inteiro por jagunços e pistoleiros. Então, a entrevista, eu percebi que tinha de fazer, porque eu precisava montar aquela história toda para divulgar, até no sentido de preservar a vida dele. A intenção era preservar a vida do Chico, coisa que nós não conseguimos — lamenta.
Ao retornar ao Rio de Janeiro, Lucélia permaneceu trabalhando em prol da causa, tentando divulgar o trabalho nacionalmente, no intuito de que isso pudesse servir como uma espécie de proteção
— Eu realmente me envolvi fortemente com a luta e a criação das reservas extrativistas, na formação do projeto, então eu sou, de fato, parte desta história — orgulha-se.
Chico chegou a voltar algumas vezes ao Rio, onde Lucélia gostaria que ele tivesse permanecido. Mas ela ressalta que ele jamais abandonaria os companheiros de luta.
E essa persistência em resistir contra a derrubada da floresta onde vivia e trabalhava continua servindo como exemplo. Para a ambientalista, ele foi o maior líder socioambiental do Brasil e seu legado é a criação das reservas extrativistas. O seringueiro inspirou prêmios, reservas, um memorial e até mesmo a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Portanto, para que os ideais de Chico nunca morram, Vozes da Floresta defende a perduração desse legado.
— A peça é muito emocionante, impressionante e é muito necessária, sobretudo para a juventude que não conhece a História do Brasil, não conhece Chico Mendes, não sabe que o Brasil teve um movimento de resistência forte na Amazônia, que são os povos de lá, os povos originários. As pessoas precisam conhecer essa história — enfatiza.