— Quando eu olho para essa data, me surpreendo. São 20 anos. É inacreditável, na verdade. É um sentimento de alegria, de conquista — destaca o diretor Eduardo Kraemer.
— Passaram voando esses 10 anos. Quer dizer, 20 anos. Foi em 2003, já faz 20 anos... — comenta o ator e dramaturgo Renato Del Campão, em um misto de incredulidade e admiração.
Para a dupla, responsável por idealizar a Cia. Teatrofídico, parece até que não foi tanto tempo assim. Afinal, 2003 foi logo ali. Mas já são 20 anos desde o nascimento de um dos grupos de teatro mais atuantes do Rio Grande do Sul.
A iniciativa nasceu como parte de um ideal, de um sonho de Kraemer e Del Campão de criar seus espetáculos a partir de uma companhia de artes cênicas — o projeto foi abraçado por outros artistas, que toparam fazer parte deste projeto, que começou sem nome, mas com muitas ambições.
Logo em seus primeiros meses de existência, as atividades da Cia. Teatrofídico se resumia à leitura de textos do acervo do Teatro de Arena, local que também abrigava os encontros dos artistas. Foi assim até que eles depararam com a escrita de Jogos na Hora da Sesta, da dramaturga romena Roma Mahieu.
Foi a partir desta obra que o grupo achou o seu norte: encenar, na maioria de suas peças, questões políticas e que falem sobre oprimidos e opressores. De acordo com Kraemer, este texto originalmente de 1976, que marcou a estreia do grupo em 2003, foi um símbolo de resistência contra a opressão na América do Sul, uma vez que Roma Mahieu residiu por vários anos na Argentina.
— Ao longo desses 20 anos, a gente foi se aventurando em várias possibilidades de textos que iam aparecendo. Houve vezes em que não fizemos textos políticos, encenando até comédias e besteiróis, mas o grupo foi por este caminho, abordando quase sempre as figuras de oprimidos e opressores — enfatiza o diretor da Cia. Teatrofídico.
Inclusive, a peça mais longeva do grupo, Apareceu a Margarida, com texto de Roberto Athayde, que foi encenada de 2008 a 2020, apresentava uma professora carrasca e autoritária, que se dirigia aos espectadores como se fossem seus alunos da quinta série. O espetáculo, de acordo com Kraemer e Del Campão, foi marcante para a companhia.
Das artes
Uma das fases mais marcantes da Cia. Teatrofídico foi quando o grupo passou a fazer parte do projeto Usina das Artes e ganhou uma sede na Usina do Gasômetro. Por lá, ficou instalada durante uma década, de 2005 a 2015, tendo o seu auge de experimentações e desenvolvimento. Conseguiam criar sem limitações e ainda contavam com um apoio financeiro. Porém, com o fim do edital e, logo em seguida, o fechamento da Usina do Gasômetro para reforma, os artistas se viram sem um espaço.
— Foi um baque muito grande deixar a Usina do Gasômetro. Desde lá, a gente não teve mais sede. Estamos, hoje, residindo no Ocidente, mas ele não é a nossa sede. Eles são os anfitriões das nossas propostas artísticas, mas não temos um espaço para guardar os nossos cenários, ensaiar, ministrar oficinas — lamenta Kraemer.
Segundo o diretor do grupo, perder o espaço, inclusive, afetou a produção dos espetáculos, uma vez que é mais difícil tirar ideias do papel sem ter um local para desenvolver o espetáculo. Mesmo assim, a companhia seguiu criando novos projetos, como Cabaré Veneno, mas o baque da pandemia pegou os artistas com força, e as máquinas pararam.
Enquanto Kraemer se abateu com a situação, a cabeça de Del Campão seguiu ativa e, mesmo durante o momento difícil para a humanidade, seguiu desenvolvendo projetos — sendo Maremoto, baseado na obra de Fernando Pessoa, que ele criou com a artista Valéria Barcellos, um divisor de águas.
Foi com esta peça que a Cia. Teatrofídico estreou o projeto Espaçonave, dentro do Bar Ocidente (Av. Osvaldo Aranha, 960), no bairro Bom Fim. O grupo, então, coordena esta iniciativa, apresentando espetáculos próprios ou convidando outras companhias para encenarem suas obras no local toda noite de quarta-feira.
O espaço foi oferecido pelo proprietário do Ocidente, Fiapo Barth, a Del Campão, que iniciou a sua carreira profissional em uma apresentação teatral no dia da inauguração do tradicional bar, em 1980 — ou seja, tanto o Ocidente quanto Del Campão iniciaram as suas trajetórias juntos e, hoje, reencontraram-se.
Comemoração
Para celebrar as duas décadas da Cia. Teatrofídico, diversos projetos estão em andamento na retomada do projeto Espaçonave para o ano de 2023. Neste mês de março, duas montagens do grupo, dirigidas por Kraemer, serão apresentadas no Ocidente. Uma delas é Deus Me Live de Você, nesta quarta-feira (15) e no dia 22, às 21h. Já no dia 29, também às 21h, será a vez de A Peça Escocesa ganhar os palcos. Os ingressos para cada sessão podem ser adquiridos por R$ 46 na plataforma EntreAtos.
O primeiro espetáculo foi escrito durante a pandemia por Renato Del Campão, que dá vida a Dona Nair. A montagem, que transforma o Ocidente na casa da protagonista, fala de solidão e memória, mas sem deixar de ser alegre e leve. Completam o elenco João Petrillo e o músico Diego Schutz. Já a apresentação do dia 29 é uma leitura dramática de Macbeth, de William Shakespeare, focando apenas as falas dos protagonistas — o próprio Macbeth e Lady Macbeth. No elenco, Petrillo e Thuanie Cigaran.
Em abril, ocorre a Oficina do Oprimido, que será baseada no método do teatrólogo Augusto Boal, o Teatro do Oprimido. O curso será ministrado por Del Campão, que estudou com Boal. Durante as aulas, será montado o espetáculo O Sr. Puntilla e seu Criado Matti, de Bertolt Brecht, que será apresentado pelos participantes da capacitação no Bar Ocidente em junho. As aulas serão de 11 de abril a 18 de maio, nas terças e quintas-feiras, das 19h às 21h30min, na Galeria La Photo (Travessa da Paz, 44, bairro Farroupilha). As inscrições podem ser feitas pelo WhatsApp (51) 98478-2991 ou pelo e-mail rcampao@bol.com.br. Kraemer explica:
— É uma oficina para iniciantes, pessoas que têm experiência e, também, para não atores, porque qualquer pessoa pode fazer teatro. O Boal dizia isso, e a gente concorda plenamente. O teatro tem o poder de mudar a vida das pessoas. Se entra de um jeito e se sai de outro, completamente transformado.
Em paralelo a isso, o grupo está montando o espetáculo O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, com previsão de estreia para este ano. O diretor da Cia. Teatrofídico leu o texto durante a pandemia e enxergou relações da obra, escrita em 1959, com o Brasil dos anos 2020. A peça, de acordo com Kraemer, conta a história de uma pequena cidade que é atingida por uma epidemia que transforma as pessoas em rinocerontes — o que se descobre, com o avançar da história, é que cada habitante do local é contaminado pelo fascismo, que os transforma em criaturas selvagens e que destroem o que enxergam pela frente.
— O teatro é uma coisa efêmera, só acontece naquela hora. Para nós, os artistas, mesmo que exista registros das peças, ela acaba quando a cortina se fecha e o público vai embora. E o que aconteceu ficou dentro da gente e dentro do público. Tudo o que a gente fez nestes 20 anos está dentro da gente: as nossas batalhas, as nossas vitórias, os nossos fracassos — destaca Kraemer. — E o sentimento de chegar nesta data é de uma alegria muito grande, mas também de desafio. Não vou parar. Quero mudar cada vez mais, buscar novas linguagens para o grupo.
Del Campão complementa:
— O teatro modifica a visão da gente, facilita a cosmovisão, que é uma visão mais ampliada, mais abrangente do que nos circunda, porque se tem uma visão crítica, artística das coisas. Estar fazendo isso ainda e ter um grupo há 20 anos, mesmo com todos os problemas e todos os obstáculos, é uma vitória.