Uma montagem diferente de uma das maiores peças do teatro moderno estreia no Teatro Oficina Olga Reverbel, novo espaço do Multipalco Eva Sopher (Praça Mal. Deodoro, s/nº), em Porto Alegre, aberto na última segunda-feira (27).
Sob a direção de Luciano Alabarse, Esperando Godot ganha novos contornos, buscando refletir sobre a realidade do mundo, que atravessa um caos ambiental. O elenco conta grandes atrizes gaúchas, que vivem papéis masculinos: Sandra Dani (Estragon), Janaína Pellizon (Vladimir), Arlete Cunha (Pozzo), Lisiane Medeiros (Lucky) e Valquíria Cardoso (Menino). A peça estará em cartaz a partir desta sexta-feira (31) e segue em temporada até 30 de abril, de sexta a domingo, sempre às 19h (ingressos a R$ 40, à venda pelo site).
Dividido em dois atos, Esperando Godot se passa em uma região desértica, sem definições temporais ou geográficas. Uma árvore seca simboliza o mundo estéril onde os protagonistas revelam suas necessidades e agonias. Sem acontecimentos relevantes ou perspectivas de mudança, dedicam-se a passar o tempo esperando Godot — que ninguém sabe exatamente quem é ou quando chegará para injetar futuro e esperança no caminho dos personagens. Esse encontro é sempre postergado. O tempo não se altera. A vida permanece circular e repetitiva.
— O que Esperando Godot diz claramente está desde o título: a espera. O ser humano está sempre em espera: de salvação, compreensão, esperança, felicidade, redenção. O que queremos valorizar são os aspectos filosóficos que o texto traz dessa espera, que é da própria condição humana — explica Alabarse.
A peça é a mais conhecida do irlandês Samuel Beckett e estreou em 1953, mesmo ano do nascimento de Alabarse. Marcando o chamado teatro do absurdo, o texto motivou incontáveis estudos, encenações e resenhas ao longo de sete décadas. A peça é considerada a mais importante da dramaturgia do século 20 por diversos críticos, consagrando Beckett como um dos maiores dramaturgos do século passado. É, ainda, uma das peças mais encenadas no Brasil.
O texto dá uma orientação imprecisa sobre o espaço onde se desenrola a história: "Estrada no campo. Árvore. Entardecer." Alabarse explica que muitos encenadores optam por um palco vazio, no qual a árvore seca é o único elemento cenográfico. Porém, para o diretor, essa escolha parece reduzir o alcance do texto, em especial levando em conta o estado distópico do mundo, seja na Europa pós-Segunda Guerra, quando o texto foi escrito, seja em 2023: um cenário de restos, destruição e ruínas. Desértico, sim; asséptico, não, conforme Alabarse.
Desta maneira, a montagem gaúcha opta por uma ambientação que leva em conta a realidade da vida contemporânea: águas poluídas, toneladas de lixo tóxico empesteando a natureza, desertos transformados em depósitos de resíduos e detritos (o deserto de Atacama, no Chile, abriga um dos maiores lixões a céu aberto do mundo), sujeira. O texto de Beckett pede um olhar que revele o estado deplorável do planeta, defende o diretor. Portanto, os personagens — erráticos, perdidos e abandonados — estão cercados por lixo.
— Nos aponta a humanidade rodeada de lixo, onde quer que esteja. A depredação do mundo é real, não é ficção, está cada vez mais próxima da gente. Estamos esperando: políticas públicas, consciências ecológicas… Godot, para salvar o planeta, e nos salvarmos junto — ressalta Alabarse.
Montagem feminina
Apesar de a peça ter sido escrita para personagens masculinos, montagens com elenco feminino já foram realizadas outras vezes — no Brasil, a primeira e uma das mais famosas foi em 1976, dirigida por Antunes Filho, com Eva Wilma, Lilian Lemmertz, Lélia Abramo, Maria Yuma e Vera Lima.
A iniciativa para a montagem gaúcha partiu de Alabarse e Sandra Dani, que sempre desejou participar do espetáculo. O aguardado momento chegou quando o diretor convidou a atriz para, enfim, dar vida ao projeto — dando origem ao elenco composto por "atrizes de excelência", como o diretor planejava.
— O que importa são as sensações, emoções, contradições do ser humano. E essas características dos personagens beckettianos são comuns tanto a homens quanto a mulheres — pondera Alabarse.
A atriz destaca que a proposta do espetáculo é levar o público a refletir, mas sem se tornar "pesado", utilizando-se, para tal, em certos momentos, do humor.
— Acho muito inquietante. O texto é maravilhoso e é muito atual também — opina Sandra, ressaltando outras questões pertinentes à realidade brasileira abordadas na peça: a exclusão e a disparidade social.
Os textos de Beckett são cheios de camadas e de possibilidades de leitura, e a ação é "para dentro", aponta o diretor. Outro aspecto interessante sobre o dramaturgo é que ele era um ateu que manteve forte relação intelectual com a Bíblia. Desta maneira, todas as obras são perpassadas por leituras bíblicas.
Esperando Godot traz ainda uma crença do autor de que as vozes da história humana continuam vivas, para além da morte. Em determinado momento, dois personagens são cercados por essas vozes. Segundo Alabarse, para Beckett, as vozes do mundo não querem reencarnar, querem apenas falar continuamente, pois recusam o silêncio, o esquecimento e a morte. Ao se debruçar sobre o texto, o diretor se lembrou das milhares de vítimas dos genocídios que escreveram a história humana, como o Holocausto.
Para Alabarse, o desafio principal encontra-se em agregar uma visão pessoal sobre um texto de tamanha envergadura. Além disso, questões da adaptação, como falas muito curtas, que devem contrastar com silêncios e pausas (que permeiam as obras de Beckett), tornam o trabalho mais árduo.
Por outro lado, Sandra aprecia trabalhar com esses desafios.
— Atualmente, de uns anos para cá, não quero fazer qualquer coisa só para estar em cena. Quero algo que me provoque, que seja enriquecimento, crescimento — afirma uma das estrelas da peça, aos 75 anos.
Uma grande temporada
Além de tantos motivos que tornam a montagem especial, oportunidades não faltarão para o público conferi-la nas próximas quatro semanas.
— Agradeço muito à Fundação Theatro São Pedro. A gente vai ficar em temporada, que é uma coisa cada vez mais rara em Porto Alegre. Isso é muito bom — diz o diretor, destacando que as temporadas têm se reduzido a dois dias ou, no máximo, duas semanas. — O teatro precisa de temporadas maiores, para pegar o boca a boca, para as matérias repercutirem, fazer o público ter vontade de assistir. É uma coisa a ser comemorada.
Sandra também exalta a felicidade em integrar a programação de inauguração do espaço multiuso.
— É maravilhoso. O teatro é um presente para Porto Alegre e para a classe cultural — celebra.