Por Everton Cardoso*
Quem esteve no Theatro São Pedro no último fim de semana (11 e 12) para uma das duas récitas da ópera Suor Angelica, de Giacomo Puccini, pela Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors), certamente saiu com a sensação de que algo muito interessante está acontecendo na cena lírica local. Para todos os que acompanhamos com interesse e gosto a companhia criada há um ano, é muito bom ver que esse grupo de artistas consegue se organizar e avançar em seus planos. Essa é a terceira peça lírica que levam a cena — depois de Cavalleria Rusticana, de Mascagni, e A Flauta Mágica, de Mozart.
A obra em um ato e cantada em italiano por um conjunto inteiramente de mulheres acontece em um convento e apresenta o drama da freira Angelica, que segue a vida monástica por ter tido um filho fora de um casamento e ser considerada motivo de vergonha para a família. A trama da ópera de Puccini se processa quando a tia da personagem-título vem visitá-la para informá-la sobre a morte da mãe e para tomar posse da herança deixada por ela a Angelica. A freira, então, fica desolada e implora para ver seu filho, que ela não via há sete anos. Ao saber que seu filho morreu, suicida-se.
A composição teve sua estreia em 1918, na Metropolitan Opera, em Nova York, e o libreto original está ambientado nos arredores de Siena, no século 17. Não resta dúvidas de que originalmente pretendia tratar de amor e sacrifício, com ênfase na maternidade e na honra de mulheres. Lançar um olhar contemporâneo sobre essa história, porém, nos leva a uma visada diferente. A mulher desvirtuada ou corrompida ou a mãe que não cria seu filho são rótulos que já não cabem mais de modo tão automático como antes. Afinal, vivemos um tempo em que mulheres vêm lutando e conquistando espaço e poder de decisão, inclusive pela maternidade solo. Na montagem que vimos esta semana, uma cena foi emblemática, nesse sentido: jogada ao chão depois de receber notícias que a devastaram, Angelica tem sua mão conduzida pela madre superiora do convento para assinar o documento segundo o qual abre mão de sua herança familiar, ou seja, rompe aquele que talvez fosse o laço que a mantinha ligada ao seu contexto social de origem.
Ressurge, então, uma questão que tem ido e vindo no debate público: como lidamos com obras artísticas cujo conteúdo ou abordagem já não nos parecem mais adequados? Há quem defenda o cancelamento, tão em voga no mundo das redes sociais; nesse caso, deixaríamos de ter contato com essa produção. Tem quem prefira alterar as obras para adequá-las aos novos tempos – eliminando expressões racistas, por exemplo. E há, ainda, quem pleiteie que elas devem seguir sendo apreciadas pelos seus méritos e pela sua importância histórica, mas sempre a partir de um novo ângulo e problematizando as questões ali contidas. Claramente, pensar sobre isso foi o esforço da Cors em todo o trabalho de comunicação e debate que precedeu a ópera, bem como na posta em cena. Inclusive porque, nesse caso, o fato de o elenco ser composto totalmente por mulheres nos leva a uma questão adicional no debate com relação aos espaços possíveis para elas na produção musical e cênica na atualidade. Fica uma questão a termos sempre em mente: como é possível promover e manter essas discussões para que obras como Suor Angelica ganhem atualidade reiteradamente?
A opção por uma montagem como essa, dirigida por Camila Bauer, que não contenha marcas muito claras de tempo ou espaço, tem sido recorrente para propor esse tipo de olhar para as histórias contidas nas óperas. Na produção apresentada pela Cors, o cenário consistia em, sobre uma plataforma, uma cruz de madeira ao fundo, emoldurada por um arco e ladeada por duas colunas, todos brancos. Dali, partiam duas escadas sobre as quais estavam cestos com plantas. Na parte frontal, uma mesa com apetrechos que Angelica usava para seus preparados fitoterápicos. Também o figurino proposto por Liane Venturella seguia nessa mesma intenção. Os hábitos das freiras eram feitos de moletom cinza mesclado com detalhes em bordô e um bolso tipo canguru, numa leitura que ao mesmo tempo remete, mas nos distancia do referencial do mundo real.
Como lidamos com obras artísticas cujo conteúdo ou abordagem já não nos parecem mais adequados?
O elenco esteve muito bem em cena, tanto no canto quanto na atuação. Na récita de domingo, Yasmini Vargaz encarnou a personagem-título da obra. A soprano, além de um canto claro e potente, esteve bem em cena, traduzindo tormentos e dramas. Igualmente, Cristine Bello Guse, contralto que interpretou La Zia Principessa no mesmo dia, esteve bem como a personagem que, de alguma forma, encarna esse ideário opressor das mulheres ao julgá-las e condená-las a partir de parâmetros morais e religiosos bastante dogmáticos. Marcante foi a cena em que as duas mulheres se encontram: a atitude subserviente apresentada por Yasmini e a empáfia impressa por Cristine deram o tom do conflito que ali se desenhava. Memorável foi o momento em que Yasmini cantava o trecho no qual Angelica lamenta tudo que enfrentou com a separação do filho e a morte dele: ela tirou uma roupa de bebê do bolso e a manuseou como se ali estivesse uma criança, tornando concreto para quem assistia o que se passava no pensamento da personagem e gerando uma identificação que muito bem nos transportou para o canto e nos comoveu.
Enfim, na montagem da Companhia, ficam duas certezas. A primeira delas é que a ópera tem potencial de nos fazer olhar para as questões de nosso tempo. O desafio é pensar em formas como essas temáticas podem ser levantadas, para que o efeito não seja contrário ao esperado e proposto. É claro que a arte não tem apenas um papel diretamente didático, mas ter como horizonte essa contribuição e como potencializá-la certamente representa um ganho para quem produz e aprecia espetáculos líricos. Adicionalmente, esse é um modo de ampliar o alcance dessas obras junto a novos públicos, sobretudo os mais jovens, tão atentos aos debates em voga, mas bastante avessos a valores e hábitos que consideram ultrapassados.
Além disso, resta a certeza do amadurecimento e da constância da iniciativa desse grupo de cantoras e cantores líricos que se lançaram na empreitada de formar uma companhia. Afinal, propuseram um modelo cooperativo de organização, vêm apresentando espetáculos com regularidade, promovem a circulação de suas produções e agora participam da consolidação do Multipalco Eva Sopher, do Theatro São Pedro. Os planos e projetos têm sido ambiciosos, mas já sobram evidências de que da Cors sempre podemos esperar mais.
* Everton Cardoso é jornalista e crítico