A Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors) abre sua temporada com uma homenagem especial no Mês da Mulher. Com um elenco 100% feminino, o grupo apresenta Suor Angelica, ópera em um ato do compositor italiano Giacomo Puccini (1858–1924). As apresentações ocorrem no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), em Porto Alegre, neste sábado (11), às 20h, e no domingo (12), às 18h, com ingressos entre R$ 30 e R$ 90, à venda no site do teatro.
A ópera se passa na Toscana no século 17 e conta a tragédia de Angelica. Após ter um filho fora do casamento, ela é abandonada em um convento para expiar a culpa de ter maculado a honra da família. Quando fica sabendo da morte de seu filho, que lhe fora tirado logo após o nascimento e de quem nunca mais tivera notícia, toma veneno para dar fim à vida. O drama atinge o clímax na agonia antes da morte, no arrependimento e na culpa de seu suposto pecado.
De acordo com Camila Bauer, responsável pela direção cênica do espetáculo, a encenação traz uma roupagem contemporânea à obra de Puccini, com elementos simbólicos que evocam as freiras e o espaço do convento.
— A gente está indo para um lugar mais aberto, abstrato, para que o espectador possa também fazer a sua leitura de que situação é essa, de que espaço é esse. Porque o libreto (escrito por Giovacchino Forzano) já sugere bastante coisa, e o que elas contam e cantam já é bastante concreto — explica.
Cantada em italiano com legendas em português, a montagem conta com 30 mulheres na ficha técnica. O papel-título será vivido por Rosimari Oliveira (na récita de sábado) e Yasmini Vargaz (no domingo). Outras 14 cantoras integram o elenco.
Ópera para mulheres
Junto com Il Tabarro e Gianni Schicchi, Suor Angelica (ou "Irmã Angélica", em português), pertence ao chamado Il Trittico — três breves obras da última fase da vida do compositor. O tríptico estreou em 1918, na Metropolitan Opera House, em Nova York. Suor Angelica foi criada em homenagem à irmã de Puccini, uma freira, e comoveu as habitantes do convento. Uma particularidade da obra é o fato de ela contar apenas com vozes solistas femininas. Contudo, acabou se tornando a ópera menos conhecida e ficou fora dos palcos por vários anos.
Diretora musical e regente do espetáculo, Eiko Senda – cofundadora da Cors – avalia que isso se deve ao fato de que a obra logo foi descartada por uma companhia russa de balé. Entretanto, também atribui o esquecimento a outros fatores, como o contexto da Primeira Guerra Mundial, no qual não havia tantas mulheres disponíveis para reproduzir a ópera.
Além disso, a influência de uma sociedade machista também pesou. Alguns homens eram castrados ainda jovens para poderem cantar com vozes agudas (os castrati, como eram denominados), enquanto as mulheres que cantavam eram vistas como promíscuas até o início do século 19, com exceção de algumas de classe alta, explica a diretora musical. Consequentemente, ópera somente com vozes femininas era uma raridade.
Na contramão da sociedade na qual estava inserido, Puccini adorava heroínas e namorou importantes sopranos.
— É uma história bastante marcante, porque desde o nascimento essa obra foi discriminada, razão pela qual nunca foi tão importante — afirma Eiko. — O mundo era machista, e algumas coisas ainda são machistas hoje em dia. Foi um escândalo quando ele escreveu essa ópera.
Todavia, recentemente, a obra foi redescoberta e passou a integrar o repertório de companhias de ópera por todo o mundo.
Para atingir a proposta de levar ópera para todo o Estado, a Cors realiza suas primeiras montagens em pequenos formatos, sem orquestra, com cenários pontuais, para viabilizar as turnês. Em Suor Angelica, o grupo optou por acompanhamento com piano e órgão (este tradicionalmente utilizado na igreja), tocados, respectivamente, por Karin Engel e por Eiko.
A diretora musical ressalta que a montagem tem sido trabalhosa, devido à complexidade das composições de Puccini, com harmonias que se transformam e tempos pouco usuais — algo desafiador de ensinar e aprender. A obra também exige mais vocalmente, tornando-se ainda mais difícil para quem não fala italiano. Porém, o elenco já está envolvido com a música e os personagens.
— Quando termina o ensaio, todo mundo está chorando, porque é uma história realmente forte para uma mulher — conta Eiko.
Ecos na atualidade
Esta é uma das primeiras montagens da obra no RS. A companhia quer democratizar o acesso à ópera e se aproximar do espectador, formando e atingindo um público diverso.
Camila ressalta que o propósito é gerar uma reflexão não apenas sobre uma circunstância de época, mas também sobre o que isso significa hoje.
— A obra, de algum modo, traz um pouco desse contexto daquela época, faz uma crítica a essa repressão que a mulher sofria, e a gente entende que ainda sofre. Que lugares são esses que são colocados para a mulher? E a gente vê, em cena, esse lugar de aprisionamento e de limitação, ao mesmo tempo que quem está trazendo esse discurso agora, em 2023, são mulheres — afirma.
Assim, o grupo traz um olhar sobre questões como repressões e violências que a mulher sofre e sobre espaços que sempre foram de poder masculino.
— Vendo essa história, de que modo a gente se identifica com isso também? Como a gente reprime o outro e se sente também reprimido em alguns aspectos da vida? — questiona Camila.
Segundo Eiko, entre as mulheres, as cantoras são ainda mais frágeis e julgadas. Por isso, a equipe optou por essa obra no mês das mulheres: para homenagear a si mesmas, bem como a todas as outras.
— Para trazer realmente esse pensamento de quem nós somos, ocupar lugares. Para louvar e honrar as mulheres que lutaram para ter essa data. E lembrar o quanto conquistamos, assistindo a essa ópera e à história de três séculos anteriores, e ver o quanto era duro — aponta.
Uma ópera simples, direta, com uma linguagem acessível e, ao mesmo tempo, uma mensagem complexa e profunda sobre a condição humana. É o que a companhia quer transmitir para o público.
Bate-papo e exposição
No sábado, às 18h, antes do espetáculo, a Cors recebe Ligiana Costa, diretora e apresentadora do podcast do Theatro Municipal de São Paulo, e Catarina Domenici, pianista e compositora. O bate-papo ocorre no Foyer Nobre do teatro e tem como foco o protagonismo da mulher, de criatura a criadora, na ópera.
A exposição Olhares Sobre nossas Irmãs também estará em exibição, com fotografias de Fernanda Chemale, Adriana Marchiori, Vitória Proença e Clara Albuquerque, entre outras fotógrafas gaúchas. A mostra está sendo preparada a partir do olhar sobre o processo de montagem de Suor Angelica. Ela permanece aberta para visitação até o dia 19 de março, na Sala de Exposições do Theatro São Pedro.