Criado em 2018, o projeto Ponto de Teatro, do Instituto Ling, tem sido uma das molas propulsoras da cena gaúcha, promovendo estreias de espetáculos de alguns dos maiores talentos das artes cênicas. A terceira edição, que começa nesta quarta-feira (26), será em formato diferente das anteriores, adaptado ao distanciamento social.
A primeira novidade é que os espetáculos serão virtuais, gravados e transmitidos online, seguidos de bate-papo ao vivo com os criadores. A mediação será do curador do Ponto de Teatro, Renato Mendonça. Se as duas primeiras edições levaram uma nova produção por mês ao palco do Ling, esta será concentrada, com uma estreia por dia. Para receber os links, basta realizar a inscrição gratuita no site do instituto.
Os quatro títulos apresentados foram pinçados por uma comissão de seleção entre 78 propostas. Os resultados foram divulgados em abril de 2020, mas as estreias ocorrem agora porque o projeto teve de ser repensado em razão da pandemia de coronavírus.
— A necessidade de se adaptar à nova formatação atingiu cada grupo de forma diferente. Alguns, antes da pandemia, já se valiam de vídeos em suas encenações. No caso da montagem para público infantil, a adaptação foi mais difícil porque o contato entre cena e plateia é muito importante nesse gênero teatral, e a encenação normalmente valoriza essa relação — observa Mendonça.
O número de inscritos, diz ele, reflete a pujança da cena gaúcha:
— É uma experiência difícil participar de um processo de seleção em que tantas boas ideias acabam não sendo escolhidas. E o que mais dói é ver que muitos desses projetos acabam não se materializando, ao menos a curto prazo.
Confira a programação:
Paraíso Afogado, da Cia. Espaço em Branco
Quarta, às 20h
Trabalhando há muito tempo a relação entre a cena e o vídeo, a Cia. Espaço em Branco resolveu radicalizar essa interseção em Paraíso Afogado. O grupo inclusive cunhou um termo para definir a novidade: kino-teatro, ou cinema teatral. Este trabalho é baseado em uma peça do austríaco Thomas Köck, que integra a mesma trilogia de Tocar Paraíso, espetáculo que a companhia estreou em 2019 dentro do projeto Transit.
— Minha encenação dá foco sobre o colonialismo e como ele se perpetua em nossa sociedade em práticas de autossabotagem e autoexploração — explica o diretor João de Ricardo. — Existe um recorte histórico (Manaus 1890, Porto Alegre 1990) relacionando a construção do Teatro Amazonas com a saga de uma menina que se torna mulher, uma bailarina que luta para encontrar sua voz e gestos singulares num contexto em que é impelida a agir como seus pais. Boletos infinitos para pagar e incerteza sobre o futuro. Ou seja, o sujeito e a cultura engessados por um sistema que só visa ao lucro.
Quase Corpos, do Ói Nóis Aqui Traveiz
Quinta, às 20h
Em sua nova criação coletiva, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz retorna a um dos dramaturgos essenciais de sua trajetória: Samuel Beckett. Livre montagem de A Última Gravação de Krapp, motivada por uma pesquisa sobre as peças curtas do autor irlandês, o espetáculo Quase Corpos — Episódio 1: A Última Gravação traz Paulo Flores, um dos fundadores da Tribo, no papel de um homem de 69 anos que faz um balanço amargurado de sua vida ao ouvir sua voz em uma fita registrada 30 anos antes. Flores analisa:
— A partir do personagem Krapp, um velho escritor fracassado que rememora fatos da sua vida passada, Beckett aborda temas como solidão, incomunicabilidade, sofrimento, angústia, finitude da vida e o absurdo da condição humana no mundo contemporâneo. Toda dramaturgia de Beckett fala diretamente aos nossos dias, o fracasso do mundo ocidental, com as suas guerras, miséria, fome e exclusão social.
A Vó da Menina, do Projeto Gompa
Sexta, às 20h
Para retratar a relação de uma senhora (a experiente atriz Sandra Dani) com sua neta (Laura Hickmann) durante a pandemia, em A Vó da Menina, os integrantes do Projeto Gompa coletaram, por meio de um formulário na internet, mais de 130 relatos.
— Havia um interesse em saber como nos lembramos de nossas avós e como nos relacionamos com elas hoje. Pudemos ver o quanto esse assunto mobiliza diferentes gerações. Começamos então a trabalhar alguns aspectos desses relatos, especialmente a relação entre netas e avós que pouco se conhecem — conta Camila Bauer, diretora da peça ao lado de Bruno Gularte Barreto.
O passo seguinte foi aprofundar o diálogo com mulheres com mais de 65 anos, o que motivou entrevistas pelo alicativo Zoom. Envelhecimento, relacionamentos e família foram alguns dos temas debatidos.
— Foi uma das etapas mais bonitas e instigantes porque poucas coisas são tão fortes quanto a vida real de pessoas reais — acrescenta Camila.
Sr. Esquisito, com Arlete Cunha, Evandro Soldatelli e Rodrigo Vrech
Sábado, às 16h
Como homenagem ao escritor e ilustrador gaúcho Hermes Bernardi Jr. (1965-2015), três criadores se uniram para montar Sr. Esquisito, o espetáculo infantil deste Ponto de Teatro — note que o horário é mais cedo do que o das demais atrações. Arlete Cunha, Evandro Soldatelli e Rodrigo Vrech estrelam e dirigem juntos esta adaptação de um texto de Bernardi Jr. que celebra a beleza de ser diferente. Para Vrech, o Sr. Esquisito que dá título ao trabalho remete ao autor da peça.
— O modo de viver do Sr. Esquisito, despojado, verdadeiro, sem julgamentos sobre si e nem sobre os outros, era o próprio modo de estar neste mundo que Hermes praticava. Ser esquisito, muito mais do que como a gente se sente, é sobre como o olhar externo nos avalia. É o estranhamento de quem observa com o olhar enviesado. Este é o tema principal aqui: exaltar a esquisitice como uma virtude.