Quando se diz que uma peça opera na fronteira entre ficção e realidade, nem sempre se tem presente algo tão intenso quanto o ocorrido com o Coletivo Errática em seu mais recente trabalho, Dispositivo-Gaivota, que teve pré-estreia em outubro de 2018 e agora cumpre no Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 307) a primeira temporada.
Antes do início do processo de criação, a encenadora Jezebel De Carli sugeriu que direção fosse de outra pessoa por causa de compromissos já assumidos por ela. A tarefa coube ao dramaturgo e ator Francisco Gick, que havia desenvolvido um trabalho sobre A Gaivota, de Tchékhov (1860-1904), na graduação em Teatro da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), onde o Errática nasceu, em 2012.
Gick, então, teve a ideia de convidar Jezebel para participar do espetáculo como atriz, função que ela cumpriu raras vezes desde Babel Genet (2008), dirigida por Humberto Vieira. Jezebel acabou topando e ingressou no elenco ao lado de Claudio Loimil, Diogo Rigo, Guega Peixoto, Gustavo Dienstmann, João Pedro Decarli, Mani Torres e Nina Picoli. Mas, assim que os ensaios foram iniciados, em maio de 2018, ela foi surpreendida por um diagnóstico de câncer de mama. Submetida a cirurgia e tratamento, precisou se afastar de parte do processo, mas não desistiu: interpreta em cena o próprio Tchékhov, uma inovação desta reescrita de Gick sobre o texto original do autor russo.
— Tchékhov, que está em processo de morte, sou eu em processo de cura — diz Jezebel, que segue em tratamento. — Chico nunca desistiu de mim, tampouco os atores e atrizes. E assim seguimos, com a realidade atravessando o processo. Dispositivo-Gaivota é fruto daquele momento. A montagem é permeada pelos acontecimentos pessoais, sociais e históricos que nos afetaram em 2018.
Grupo define peça como "transcriação"
Este é o primeiro trabalho do Errática para o público adulto desde Ramal 340, que ganhou o Prêmio Açorianos de Teatro 2016 de melhor espetáculo, cenografia (Rodrigo Shalako) e figurino (Gustavo Dienstmann). Para encarar o clássico russo, Gick buscou o conceito de "transcriação", empregado por Haroldo de Campos (1929-2003) para reforçar o lado criador do ato de traduzir, diferente da tradução como espelho fiel do original. Gick defende que a peça de Tchékhov não precisa ser atualizada e que o trabalho do grupo foi evidenciar os pontos de ressonância entre o texto de 1896 e os artistas que o retomaram em 2018.
— É sempre um encontro: com Tchékhov, com o outro, com nosso tempo — diz o diretor e dramaturgo. — Mas nosso dispositivo tenta desarticular o núcleo edipiano da trama, adicionando um novo vetor à narrativa que aponta para fora. Fora da personagem, fora da família, fora da casa.
O espetáculo preserva o enredo e os personagens do texto original, mesmo que deslocados pela nova dramaturgia: um encontro, em uma propriedade rural, entre personagens envolvidos com amores não correspondidos, frustrações e uma sensação de impotência perante a vida. Mas o que resta de A Gaivota em Dispositivo-Gaivota?
— Aquilo que ecoa em nós — responde Gick. — O amor, a arte, a angústia com o presente, o medo do futuro e a constatação de que é preciso continuar em movimento.
DISPOSITIVO-GAIVOTA
De sextas a domingos, às 20h30min. Temporada até 23 de junho.
Duração: 70 minutos. Classificação: 16 anos.
Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 307), em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 30. Meia-entrada para estudantes, idosos, classe artística, alunos da Casa de Teatro de Porto Alegre e funcionários da rede municipal. À venda no site entreatosdivulga.com.br e na bilheteria do teatro, uma hora antes de cada sessão.