Não há nada mais cafona do que a ideia de "reencontrar-se consigo mesmo", essa expressão vergastada pelo discurso da autoajuda a ponto de não se saber mais o que significa. Mas é difícil não pensar nisso ao assistir ao espetáculo A Última Peça, do grupo Teatro Sarcáustico, que estreou na última sexta-feira (7) e segue em cartaz até 22 de junho no Instituto Ling, na Capital, dentro do muito bacana projeto Ponto de Teatro.
Depois de um desvio por uma linguagem performática em Nós por Nós, de 2017, registro com o qual já havia trabalhado antes, o grupo retoma os princípios expressos em seu nome, uma fusão de "sarcástico" com "cáustico". São características de alguns de seus melhores momentos, como Gordos ou Somewhere Beyond the Sea (2004), a primeira montagem; Wonderland e o Que M. Jackson Encontrou Por Lá (2010), uma superprodução para o padrão local; e Viral (2014), solo em que Daniel Colin se desdobrava em diferentes personagens.
Beneficiada pelo olhar da diretora convidada Gabriela Poester (encenadora da ambiciosa vivência teatral Moscas, de 2015), A Última Peça trata de despedidas e recomeços, mas esse é apenas o invólucro. O recheio é um afiado deboche dos sobreviventes do Sarcáustico — Daniel Colin, Guadalupe Casal e Ricardo Zigomático — sobre a sua própria trajetória de 15 anos como grupo e sobre a realidade brasileira na qual estão inseridos.
Durante uma apresentação, é sempre uma boa ideia manter os celulares silenciados ou desligados, mas não nesta. Na entrada do auditório do Ling, cada espectador inscreve seu número no grupo de WhatsApp da peça, interagindo em tempo real com os atores e os outros espectadores. A ideia funciona muito bem. É difícil dar conta de tudo o que acontece no palco e, ao mesmo tempo, no grupo de WhatsApp, mas esse excesso de informação enriquece a experiência e reflete o mundo em que vivemos, no qual é necessário fazer escolhas constantes.
Satirizando o mundo das notícias (verdadeiras e falsas) e o nada glamouroso showbusiness do teatro brasileiro, o Sarcáustico ainda soa como os jovens provocadores de 15 anos atrás, e isso é um grande elogio. Mas não é tudo. Enquanto o público gargalha, os atores disparam rojões dramatúrgicos — uma informação sobre a política brasileira ou uma dolorosa lembrança pessoal — que trazem de volta à dura realidade. É impossível não se questionar: afinal, do que estamos rindo?
A Última Peça está sendo divulgada como a última peça do Teatro Sarcáustico. Cabe torcer para que seja apenas mais uma pegadinha. Realidade ou ficção, os atores têm o privilégio um tanto fúnebre de viver a experiência do fim. O que você diria se esta fosse a sua comunicação derradeira? Declamaria em um palco? Gravaria um áudio? Mandaria um meme? O Sarcáustico optou por organizar uma festa diferente, da qual se sai com a incômoda sensação de que há algo no mundo fora do lugar.
A ÚLTIMA PEÇA
Sextas, às 20h, e sábados, às 18h. Temporada até 22 de junho.
Instituto Ling (Rua João Caetano, 440), fone (51) 3533-5700, em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 40. À venda no local e no site institutoling.org.br.