Apesar de eu ser gaúcho, churrasco era coisa rara na minha infância. Nosso apartamento em São Paulo não tinha churrasqueira (imperdoável pecado arquitetônico dos paulistas), e minha família não frequentava churrascarias. Não em São Paulo. Nosso restaurante preferido era um simpático chinês das redondezas.
Mas a tentação da carne estava sempre comigo. Apesar de longe daquela realidade, um amigo gostava de inserir nas brincadeiras de Lego um bonequinho preparando um delicioso assado. Não me sai da memória a pecinha de plástico translúcido na cor vinho que representava a tenra picanha – era sempre picanha.
São Paulo tinha de tudo, mas churrasco, para a minha família, se comia no Rio Grande do Sul. Mal chegávamos no apartamento de Capão da Canoa para inaugurar o verão e já cercávamos o pai. Era um momento sagrado para ele também, que preparava. Valia a pena salivar o ano inteiro em cima das peças de Lego para reviver a glória de comer, nas férias, uma picanha de verdade, o suco se insinuando espeto abaixo até tingir nossos pratos.
Quando retornamos de São Paulo a Porto Alegre, na minha adolescência, os churrascos se tornaram mais frequentes em casa, assim como as idas a churrascarias nos fins de semana. O Rio Grande do Sul trouxe a carne de volta à nossa mesa, Deus é mesmo gaúcho. Mas o churrasco hoje virou um negócio diferente do que era na época.
Ou pelo menos assim me parece.
Tenho dedicado parte do tempo livre no isolamento social à arte do assado, que se sofisticou com o passar do tempo. Basta conferir os canais sobre churrasco no YouTube. O tradicional espeto, ainda usado, parece dar cada vez mais lugar à grelha de parrilla. Se antes se temperava a carne com sal grosso e era isso, agora temos à disposição sal entrefino, flor de sal e sal com pimenta.
O bom e velho carvão, descobri, pode ser acompanhado no braseiro por pedaços de lenha – ou lascas, ou até chips de lenha, dependendo da sua firula – para dar um gostinho de defumado. Pelas ruas da cidade, começaram a aparecer butiques de carne, e até mesmo os açougues mais tradicionais só querem ser chamados de casas de carne. Como tudo, o churrasco se gourmetizou. Quando foi isso?
Uma parte de mim lamenta que o assado sem mistério, como meu pai fazia, tenha virado alta ciência. Outra parte de mim comemora, devoto que sou do conhecimento. Nada se iguala aos churrascos da infância servidos na memória, mas a verdade é que estamos comendo cada vez melhor. As informações sobre diferentes técnicas de preparo estão a um clique de distância, e a tradição, cá entre nós, se reinventa.
Devo admitir, contudo, que minha aventura de isolamento social não durou muito. Há um momento em que a tradição inevitavelmente esbarra na realidade econômica, e o preço da carne hoje não é brincadeira, mesmo para quem opta pelos cortes mais acessíveis. Mas quem já passou o ano inteiro à espera de um churrasco não desanima com qualquer revés. Talvez seja a hora de experimentar a injustiçada melancia grelhada da Bela Gil. Ou desencaixotar as peças de Lego e voltar a sonhar.