Por Milton do Prado*
O 76° Festival de Cannes encerra-se neste sábado (27/5), com a premiação da mostra principal. Com o fim do estado de emergência de saúde pública declarado pela OMS em 5 de maio, poucas máscaras foram vistas nos cinemas e a ocupação de hotéis e restaurantes voltou ao nível de antes de 2020. O evento, responsável por multiplicar por três a população da cidade (que tem cerca de 70 mil habitantes), impulsiona negócios que compreendem a aquisição de filmes e séries, assim como investimentos para a coprodução de projetos. O Marché du Film, no térreo do Palácio dos Festivais, tem estandes de vários países, incluindo o Brasil.
Se o festival é indubitavelmente um grande negócio, ele sobrevive pela sua importância cultural. Planejado em 1939, cancelado pelo início da Segunda Guerra e inaugurado finalmente em 1946, Cannes surgiu como uma resposta francesa à Mostra de Veneza, alinhada ao governo fascista. Aos poucos, a diplomacia cedeu lugar aos filmes – para se ter uma ideia, até os anos 1970, cada país escolhia suas indicações, como no Oscar. A escolha dos selecionados, hoje, é sempre acompanhada de muita expectativa, com Cannes sendo um festival que também aponta tendências, confirma nomes e revela novos talentos. A seleção deste ano prometia muito.
O início do evento, no entanto, foi abalado por polêmicas e uma forte pressão política, fruto de mudanças no mundo e do momento político da França. Desde o começo de 2023, protestos tomam conta do país por causa da impopular reforma da aposentadoria imposta pelo governo Macron sem passar pelo Congresso. No festival, houve uma pequena manifestação de sindicalistas da rede hoteleira na calçada do hotel Carlton. Depois outra, maior, no domingo – que, contudo, não pôde se aproximar do evento. Na última terça-feira, ocorreu o acidente mais preocupante, quando um homem teve uma parada cardíaca após a explosão de uma bomba agrícola perto da estação de trem no centro da cidade, sendo socorrido em seguida. A ameaça de corte de eletricidade do festival não se concretizou, talvez porque a própria Confédération Général du Travail (CGT) faça parte do conselho administrativo. Um pequeno corte de eletricidade e gás aconteceu, porém, na terça, afetando o fornecimento de alguns restaurantes. Nada que tenha abalado o Palácio dos Festivais.
Também o mundo do cinema forneceu sua carga de polêmicas. Jeanne du Barry, o filme de abertura, traz Johnny Depp no papel de Luís XV, em seu primeiro trabalho depois do mediatizado julgamento em que fora acusado de agredir a ex-mulher. Para piorar, a diretora e atriz, Maïwen, sofre um processo por agressão contra um jornalista. Se ela é conhecida como uma enfant terrible, a maior provocação do convencional drama, quando exibido, foi de tédio na plateia.
Já Le Retour, de Catherine Corsini, foi alvo uma série de denúncias que vão de assédio moral por parte da diretora, assédio sexual de um técnico sobre uma atriz menor e constrangimentos ligados a uma cena de masturbação da adolescente que não estava inicialmente no roteiro. Essas duas polêmicas tiravam o foco de um dado promissor: além de Maïwen e Corsini, a presença de realizadoras foi notada no festival. Dos 21 filmes em competição à Palma de Ouro, sete foram dirigidos por mulheres. Uma proporção ainda longe da desejada, mas maior do que qualquer outra na história do festival.
Dos filmes apresentados por diretoras, o mais bem-sucedido até o momento em que este texto foi escrito foi Anatomie d’une Chute, da francesa Justine Triet. Revelada há 10 anos com A Batalha de Solferino, Triet tem construído uma sólida carreira com retratos de fortes personagens femininas em situações de extrema tensão. O tom semi-aloprado dos dois primeiros longas vem sendo substituído desde Sibyl (2019) por um tom mais grave, que, por sua vez, permite respiros cômicos inesperados. No novo filme, acompanhamos a escritora vivida pela ótima Sandra Hüller (no elenco do impressionante The Zone of Interest, também na mostra) tenta provar sua inocência na queda que levou seu marido à morte. Uma incrível sequência de abertura vai deixando lugar a um tom mais convencional, em um trabalho que está entre os mais bem avaliados pela crítica internacional.
Há também o intrincado drama metalinguístico Les Filles d’Olfa, da tunisiana Kaouther Ben Hania, o primeiro longa de Ramata-Toulaye Sy, Banel e Adama, do Senegal, e aquele que é considerado por muitos críticos o pior filme da competição, Club Zero. A maior expectativa recai sobre dois filmes deixados para os últimos dias (não vistos pelo autor deste texto): L’Été Dernier, o retorno da francesa Catherine Breillart, e La Chimera, da italiana Alice Rohrwacher, dos excelentes As Maravilhas (2014) e Lazaro Felice (2018).
A Itália, aliás, é um dos destaques do ano, isso sem incluir o belo novo filme de Martin Scorsese, exibido fora de competição. Marco Bellochio, um dos grandes realizadores vivos, apresentou Rapito, baseado em fatos reais, que mostra a história de uma criança judia separada de sua família pelo simples fato de ter sido supostamente batizada, no século 19. O absurdo perpetrado pela Igreja Católica vai contribuir com a tomada de Roma pelos republicanos à medida que a Itália se encaminha para a unificação. Bellochio administra o drama em vários níveis – familiar, nacional, de tribunal – no tom trágico que é conhecido, atingindo uma forte carga emocional ao final. Em um tom mais leve, Nanni Moretti traz seu Il Sol dell’Avvenire, conto agridoce sobre um diretor em crise no casamento e na produção de seu filme sobre os militantes comunistas dos anos 1950. Se nada é exatamente novo no cinema de Moretti, não se pode negar a delícia das cenas musicais e da divertida reunião com investidores da Netflix.
Às vezes o que um cineasta apresenta é isso mesmo, a repetição de ideias ou de formas. O que não é, necessariamente, um problema. Asteroid City, de Wes Anderson, traz mais uma vez os cenários artificiais, as cores pastéis, o humor amalucado, o stop motion e o elenco estelar dos outros filmes do realizador. Mas esse formato agora parece mais controlado e entrega resultados melhores do que no início de sua carreira. No novo filme acompanhamos em paralelo a história de um dramaturgo criando uma peça de sucesso (em preto e branco) e a história desenvolvida pela própria peça (em cores). Com a divisão de atos e cenas explicitada por cartelas, Asteroid City flui que é uma beleza, embora o humor nem sempre funcione. Ora, parece ser exatamente o caso de um filme bem diferente. Les Feuilles Mortes, do finlandês Aki Kaurismaki, tem como pano de fundo (ou som de fundo, via notícias de rádio) a guerra da Ucrânia e mostra o início acidentado do romance entre um alcóolatra que trabalha com obras e uma operadora de caixa de supermercado, ambos procurando novos empregos e tentando trabalhar em uma Europa que está conhecendo uma inflação fora dos seus padrões. Seja pelos personagens, pelo tema ou pela imagem, os filmes de Kaurismaki se assemelham muito entre si, o que parece não permitir voos mais altos. É verdade, porém, que este último é um dos mais bem-sucedidos na construção dessa esperança tão amarga e às vezes até engraçada.
O Brasil em Cannes
Firebrand, produção inglesa dirigida pelo brasileiro Karim Aïnuz, tem elenco estelar (Alicia Vikander, Jude Law) e conta a história de Catherine Parr, última esposa do cruel rei Henrique VIII, que em pleno século 16 foi escritora e teve atuação importante na reforma anglicana. Aïnouz demonstra sua conhecida habilidade plástica em construir uma mise en scène dos corpos, que muitas vezes se enfrentam aproximando-se ou afastando-se da câmera que não os enquadra completamente. O resultado, porém, é morno para quem também conhece a força dos outros trabalhos do cineasta – seus filmes anteriores já confrontavam o patriarcado com mais eficiência.
O Brasil teve outras produções no festival, em diferentes sessões. Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema, um documentário de Aída Marques e Ivelise Ferreira, é uma afetiva homenagem ao grande realizador falecido em 2018, montado a partir de arquivos e, principalmente, de entrevistas. Entre o afeto, o registro histórico e a vertigem de ver o festival em imagens do passado, ficamos com vontade de voltar aos filmes de Nelson, como Memórias do Cárcere, ovacionado em Cannes em 1985.
Kleber Mendonça Filho teve seu Retratos Fantasmas exibido em uma das Sessões Especiais da seleção oficial. O filme é um mergulho pessoal e afetivo em um material de arquivo para entender alguns espaços de Recife, do apartamento da família aos cinemas de centro, fechados em sua maioria nos anos 1990. O amor do realizador por esses lugares que lhe forneceram o imaginário que vemos em todos seus filmes (O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau) é tocante.
A Flor do Buriti, exibido na mostra Un Certain Regard, é o novo filme da dupla João Salaviza e Renée Nader Messora, de Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, exibido no festival em 2018. Visualmente impressionante, o longa é uma ficção baseada em histórias contadas por membros da tribo Krahô, do Tocantins. A luta de sobrevivência é mostrada em décadas diferentes, com registros do cotidiano e presença forte do sonho. Já Levante, primeiro filme da realizadora Lillah Halla, acompanha a trajetória de uma jogadora de vôlei de 17 anos, da periferia paulista, que está para ser convidada para jogar no Chile quando descobre que está grávida. A trajetória dela em busca de uma maneira de abortar, no Brasil atual, tem vários bons achados, o maior deles o apoio que recebe do grupo de colegas do time. O filme tem muitas fragilidades, mas a presença de Ayomi Domenica, filha do rapper Mano Brown, no papel principal, é marcante.
Quem vai levar?
O que esperar, então, da premiação final? Há quem aposte que um júri presidido pelo sueco Rüben Ostlund, diretor de Trângulo da Tristeza (2022), tenderia a premiar a sátira cínica de Club Zero. O fato, porém, é que esse tipo de dedução raramente funciona, em função das dinâmicas de cada grupo de jurados, compostos por personalidades diferentes, sensíveis ao momento atual. Pensando assim, Les Feuilles Mortes, por falar de uma Europa sem esperança em meio à guerra da Ucrânia, poderia surpreender.
O que podemos é apontar os nossos favoritos. Les Filles d’Olfa ou Anatomie d’une Chute devem disputar o prêmio de melhor atriz, enquanto o favorito a melhor ator é Benoît Magimel, o cozinheiro do belo e très français La Passion de Dodin Bouffant, com Juliette Binoche. Já os prêmios principais podem ficar entre Rapito, de Bellochio, o jogo narrativo intrincado e humanista de Monster, de Hirokazu Kore-Eda, ou, se o júri quiser premiar a experiência mais inesperada e perturbadora do festival, The Zone of Interest, de Jonathan Glazer. Alternando registros naturalistas com o já conhecido gosto de Glazer por construções sensoriais artificiais, este filme é um mergulho no cotidiano da família de um oficial nazista. Uma família comum, muito parecida com muitas que conhecemos, diga-se.
Todd Haynes e seu May December também podem ser premiados, com a Palma de Ouro ou o troféu de melhor atriz, para Natalie Portman e/ou Julianne Moore. E, se o júri quiser surpreender completamente, o documentário radical de Wang Bing, Jeunesses (Printemps), surge como uma boa possibilidade.
Com exibições marcantes de clássicos (L’Amour Fou, de Jacques Rivette; Vale do Abraão, de Manoel de Oliveira) e sessões especiais como o “trailer” do filme que nunca será feito de Jean-Luc Godard, morto em 2022 (“Drôles de guerres”), o Festival de Cannes 2023 mostrou que está mais vivo do que nunca.
*O cineasta, pesquisador, crítico e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23