Por Milton do Prado*
À medida que o Festival de Cannes se aproxima do seu fim, é preciso vencer o cansaço para tentar dar conta de um número razoável de filmes, tendo em mente alguns critérios. Aqui, escolhemos priorizar os filmes da competição oficial, com poucas exceções entre exibições especiais e Cannes Première, uma sessão criada em 2021 para tentar dar conta de alguns filmes represados pela pandemia. Embora haja muito questionamento sobre o que caracteriza esta sessão, Tierry Fremaux, diretor geral do festival, defende que ela não é apenas uma sobra de filmes que não entraram na disputa pela Palma de Ouro ou na Un Certain Regard, e provavelmente continuará existindo nas próximas edições. Os da Quinzena dos Cineastas poderão ser conferidos na próxima semana, em outros cinemas franceses. Quanto à Cannes Classics, que abriu o festival de forma retumbante com L’Amour Fou, faz salivar todos os dias com as excelentes ofertas, que não conseguiremos ver em função da sede por novidades.
Há, no entanto, exceções. Segunda-feira (22) a Quinzena optou por fazer sua exibição de um clássico que completou 30 anos desde sua exibição no Teatro da Croisette. Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, foi ovacionado em 1993 – e uma das imagens do filme foi escolhida para o poster desta sessão paralela nesse ano. A atriz principal, Leonor Silveira, ausente quando da primeira exibição por “tensões que tinha tido com o diretor” (nas palavras de Paulo Branco, produtor do filme), apresentou agora a sessão, afirmando que levou alguns anos para entender a importância do filme para o cinema europeu moderno. A versão exibida em Cannes tem 18 minutos a mais do que a original. Oliveira queria adaptar Madame Bovary, mas, como Chabrol já o estava fazendo, ele encomendou um livro para Augustina Bessa Luís para, depois, adaptá-lo ao cinema. Esse processo faz com que o livro de Flaubert seja mencionado diretamente pelos personagens, que apontam eles mesmos semelhanças entre o comportamento da Ema do filme e a do romance – ela chega a ganhar o apelido de Bovarinha. Vale do Abraão é um afresco de uma certa burguesia portuguesa, seu reacionarismo, seu contato com a erudição ao mesmo tempo que se sente isolada da Europa mais rica. Ema Cardeano Paiva não se contenta, então, com o tédio de seu casamento com Carlos, e emenda algumas aventuras amorosas que, no entanto, não escondem sua melancolia.
Do país vizinho, Espanha, vem o novo filme de Victor Erice, seu primeiro longa-metragem desde O Sol de Marmelo (1992) e o primeiro de ficção desde O Sul (1983). Cerrar los Ojos foi exibido, logo, com grande expectativa e fora de competição, com presença da equipe e elenco, mas não do realizador. Uma pequena polêmica apareceu nos bastidores, em função disso, com relatos de que Erice teria ficado chateado de não estar em competição, alimentados por uma crônica – com tom fortemente bairrista – publicada no jornal El País dia 21 de maio. Nesta semana, dia 24, o jornal mesmo jornal publicou uma carta do realizador, explicando suas razões, mais ligadas à falta de comunicação por parte de Fremaux, que o impediu de colocar o filme em sessões paralelas ou mesmo deixar para outros festivais. Uma pena, pois trata-se de uma bela obra de retorno. Cerrar los Ojos mostra a busca de um diretor de cinema aposentado, Miguel, por um ator que 30 anos antes tinha desaparecido no meio de uma filmagem. Erice não tem pressa em evoluir a história e, apesar de uma reiteração naif sobre o fim da película, constrói um filme muito mais caloroso que suas películas anteriores.
As Filhas do Fogo é um curta-metragem do realizador português Pedro Costa, um estudo de um futuro longa-metragem, cujas imagens já foram apresentadas como instalação em Barcelona. Em uma tela dividida em três espaços, as mulheres do título cantam uma música baseada em uma canção popular ucraniana, em um resultado bastante forte. O curta foi exibido em conjunto duas vezes, uma com Man in Black, de Wang Bing, e outra na reprise de “Drôles de Guerres”, de Jean-Luc Godard. O filme de Bing, bem diferente daquele apresentado em competição, foi filmado no teatro Bouffes du Nord, em Paris, com o compositor chinês Wang Xilin nu, movendo-se e contando sobre perseguição que sofreu do governo chinês. Um incrível trabalho com a música, que muitas vezes se sobrepõe ao relato de Xilin, belissimamente fotografado por Caroline Champetier, que já trabalhou com Leos Carax, Jacques Rivette, Chantal Akerman e Godard. Incrível perceber como o filme de Costa ecoa de forma diferente quando exibido junto com o de Bing (ambos tours de force de intensidade) ou com o do diretor suíço (ambos os filmes sendo rascunhos para um trabalho maior que, no caso de Costa, a gente espera que venha a se concretizar).
De volta à competição
O que falar de Club Zero, dirigido pela inglesa Jessica Hausner? Nos primeiros minutos, ainda há a esperança de que ela aproveite sua sensibilidade em entender a fragilidade de um certo tipo de adolescente dos dias de hoje, pressionado por demandas de várias naturezas – salvar o planeta, emagrecer, ser politicamente correto. Só que logo fica claro que o foco do filme é outro, construído com aquele tom que faz com todos os personagens sejam ridicularizados em algum momento. Há quem ache que esse cinismo fácil vai fazer a cabeça do presidente do júri, Ruben Östlund, mas sabemos que essas conexões não funcionam nem sempre assim. Quem iria apostar que o júri presidido por Quentin Tarantino daria a Palma de Ouro para Farenheint 11/9, de Michael Moore, por exemplo? Em todo caso, o realizador sueco sabe ao menos como dar um final a seus filmes, o que não é o caso da diretora inglesa.
No extremo oposto está Feuilles Mortes, do finlandês Aki Kaurismaki, que abraça com carinho seus personagens derrotado. Tendo como pano de fundo (ou som de fundo, via notícias de rádio) a guerra da Ucrânia, o longa mostra o início acidentado do romance entre um alcóolatra que trabalha com obras e uma operadora de caixa de supermercado, ambos procurando novos empregos e tentando trabalhar em uma Europa que está conhecendo uma inflação fora dos seus padrões. Seja pelos personagens, pelo tema ou pela imagem, os filmes de Kaurismaki parecem muito entre si, o que parecem não permitir voos mais altos. É verdade, porém, que este último é um dos mais bem-sucedidos na construção desta esperança tão difícil, amarga e muitas vezes até engraçada.
Se há um diretor veterano ainda em forma, este é o italiano Marco Bellocchio, que em anos recentes mostrou em Cannes O Traidor (2019) e dois episódios da série Externo Notte (2022). Seu novo filme, Rapito, é baseado em fatos reais e mostra a história de uma criança judia separada de sua família pelo simples fato de ter sido supostamente batizada, no século 19. O absurdo perpetrado pela Igreja Católica vai contribuir com a tomada de Roma pelos republicanos à medida que a Itália se encaminha para a unificação. Bellochio administra o drama em vários níveis – familiar, nacional, de tribunal – no tom trágico que é conhecido, atingindo uma forte carga emocional ao final. É com certeza um dos filmes favoritos para a Palma de Ouro, feito por um cineasta que domina como poucos a linguagem cinematográfica, que só será esnobado pelo júri se este entender o trabalho como convencional – equívoco no qual parte da crítica parece estar caindo.
A Itália, aliás, está em alta nesta edição do festival, isso sem incluir o belo novo filme do ítalo-americano Martin Scorsese, exibido fora de competição. Nanni Moretti, outro veterano, traz seu Il Sol dell’Avvenire, conto agridoce sobre um diretor em crise no seu casamento e na produção de seu filme sobre os militantes comunistas dos anos 1950. Temos então, como sempre, a crônica política sobre seu país, misturada com histórias de amor, com uma boa dose de autorreflexão e um humor entre o carinho e a autocomiseração. Se quase nada é exatamente novidade no cinema de Moretti, não se pode negar a delícia das cenas musicais e pelo menos duas cenas antológicas: uma mostrando uma divertida reunião com possíveis investidores da Netflix; e outra onde o diretor interrompe de forma abrupta e por muito tempo as filmagens de outro realizador.
Mais Brasil no festival
A participação brasileira no festival se completou com mais dois longas-metragens. Exibido na Un Certain Regard, A Flor do Buriti é o novo filme da dupla João Salaviza e Renée Nader Messora, de Chuva É Cantoria na AldeiadDos Mortos, já exibido no festival. Visualmente impressionante, o filme é uma ficção baseada em histórias contadas por membros da tribo Krahô, do Tocantins, incluindo o relato de um massacre sofrido na década de 1940. A luta de sobrevivência é mostrada em décadas diferentes, com registros do cotidiano e presença forte do sonho. Com imagens visualmente impressionantes e uma atenção especial na construção de personagens, o filme parece cair um pouco na sequência em que alguns deles viajam para Brasília – uma documentação importante de um momento político tenso no país, mas que formalmente parece um corpo estranho no filme.
Já Levante, primeiro filme da realizadora Lillah Halla, acompanha a trajetória de uma jogadora de vôlei de 17 anos, da periferia paulista, que está prestes a ser convidada para jogar no Chile, quando descobre que está grávida. A trajetória dela em busca de uma maneira de abortar, no Brasil atual, tem vários bons achados, o maior dele o apoio que recebe do grupo de colegas do time. O filme tem muitas fragilidades, como a resolução de uma viagem ao Uruguai, ou ainda uma importante cena final cuja decupagem não consegue expressar a angústia necessária. Fica a presença marcante de Ayomi Domenica, filha do rapper Mano Brown no papel principal.
É preciso dizer que Cannes não economiza na seleção de filmes produzidos no seu território, pois sabe a importância de valorizar com critério sua produção, um recado que festivais como o de Gramado poderiam levar em conta em relação à região onde ele se localiza. Assim, um filme dirigido por um vietnamita (Anh Hung Tran, de O Cheiro do Papaia Verde, 1993) é provavelmente a produção mais tipicamente francesa do festival. La Passion de Dodin Bouffant conta a história do cozinheiro do título (vivido pelo ótimo Benoît Magimel), sua relação com sua assistente (Juliette Binoche) e a cozinha francesa, em toda sua pesquisa de produtos e ciência nas combinações. Por mais restrições que se tenha ao tema ou ao passadismo do filme, ele não deixa de ser uma experiência também apaixonante.
Nossa participação no Festival de Cannes termina por aqui. Outros compromissos impedem nossa presença nos dois últimos dias, onde serão exibidos os novos filmes de veteranos como Ken Loach e Wim Wenders, assim como os aguardados trabalhos de duas ótimas realizadoras: L’Été Dernier, o retorno da francesa Catherine Breillart, e La Chimera, da italiana Alice Rohrwacher, dos excelentes As Maravilhas (2014) e Lazaro Felice (2018).
*O cineasta, pesquisador, crítico e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23