Por Pedro Henrique Gomes
Editor do fanzine Zinematógrafo, membro da Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs)
Não importa para onde se olhe, dos primeiros registros etnográficos das “Missões Civilizatórias” no início do século 20 aos filmes de aventura de Tarzan, dos filmes de um minuto captados pelos operadores de câmera dos Irmãos Lumière aos passeios heroicos das tropas da Legião Francesa sobre o Saara: a representação da África e dos africanos, por décadas a fio, esteve sob os auspícios dos colonizadores, mantida sob o filtro do exotismo pelo olhar euro-americano.
Financiada pela ideologia do dinheiro e do poder dos impérios europeus e pretensamente justificada, de um ponto de vista moral, pela ciência (leia-se, pelo racismo científico), a colonização foi um empreendimento de conquista, dominação, pilhagem e morte. Por muito tempo, no âmbito da produção de imagens, a possibilidade de falar de si era negada aos africanos, impossibilitados de assumirem papeis de protagonismo. Em nome do racionalismo e do humanismo ocidental, construiu-se um acervo de imagens que sub-representava os povos colonizados, de modo que, ao se falar em África, uma série de estereótipos poderiam ser mobilizados mundo afora pelo imaginário popular como imagens unidimensionais de um continente inteiro.
Foi somente com as independências dos países africanos do domínio colonial que os meios de expressão do cinema puderam ser utilizados pelos africanos, para os africanos e narrados a partir de idiomas africanos. A luta dos cineastas da primeira geração após as independências consistiu, em boa parte, em se apropriar dessas instâncias de enunciação e representação. Em outras palavras, em narrar as suas próprias histórias.
Aquilo que vinha germinando desde antes das independências por meio do trabalho de intelectuais no continente e na diáspora, bem como pela obra de alguns autores europeus (Jean Rouch, René Vaultier) que negavam o sistema de opressão colonial, formou as bases para o nascimento dos cinemas africanos. O movimento que chamo de virada representacional, nascido a contragolpe do cinema colonial vigente, ocorre no momento que vai do pós-guerra aos anos 1960, com a independência de dezenas de países africanos do sistema e da tecnologia coloniais. A luta, é claro, atravessa a história de lá até a aqui, com suas tensões e conflitos.
E se aqui pudemos fazer apenas um pequeno esboço de linha narrativa, é imperioso destacar que foi por meio da obra de cineastas como Ousmane Sembène, Med Hondo, Safi Faye, Djibril Diop Mambéty, Sarah Maldoror, Paulin Soumanou Vieira e diversos outros que o cinema nos países africanos deu os primeiros passos e plantou os mais variados desafios estéticos, narrativos, enfim, políticos, aos cineastas das gerações seguintes.
Para investigar como esses cinemas se desenvolveram ao longo das últimas décadas, é fundamental conhecer os pioneiros, mas é necessário também olhar para novas narrativas e discursos, tematizações, pontos em comum e as mais diversas formas de representação adotadas pelos cineastas nos últimos anos. E se os espaços de exibição ainda são notadamente escassos para a produção contemporânea dos cinemas africanos, aproveitar oportunidades de contato com novos filmes é certamente imperdível.
No Brasil, o evidente e crescente interesse de pesquisadores e do público sobre as cinematografias africanas é uma ótima notícia. Graças aos esforços de pequenos espaços exibidores, cineclubes e produtoras independentes, a quantidade de mostras e festivais dedicados aos filmes de África é notável e deve reverberar ainda mais, não só para alargar as possibilidades de engajamento do olhar dos públicos contemporâneos, por vezes bastante impacientes, mas para provocar novas questões, novas perspectivas críticas e desafios também para quem pesquisa, principalmente quando falamos do cinema africano contemporâneo e das dificuldades que persistem em perturbar o pleno desenvolvimento da cadeia produtiva na grande maioria dos países do continente.
A mostra Uma Viagem pelo Cinema Africano vem se somar a esse panorama em permanente e necessária construção. Da terça-feira (4/1) até 2/2, o público poderá conferir 14 filmes de 11 diferentes países em exibição no Cine Farol Santander, em Porto Alegre. Filmes que, cada um ao seu modo, ajudam a desatar certos nós que acompanham as cinematografias africanas desde seu nascimento e, ao mesmo tempo, contribuem para colocar em crise e confrontar outras demandas e histórias.
Uma Viagem pelo Cinema Africano
Mostra em cartaz no Cine Farol Santander entre 4/1 e 2/2, com 14 filmes de 11 países. Em destaque no primeiro fim de semana estão Minga e a Colher Quebrada, animação camaronesa de Claye Edou de 2017 sobre a aventura de uma menina expulsa de casa, em exibição sábado e domingo, às 15h, e Rua do Deserto, 143, documentário do argelino Hassen Ferhani premiado no Festival de Locarno de 2019 sobre Malika, mulher que acolhe viajantes no deserto do Saara, sábado e domingo, às 17h30min. Saiba mais em pranafilmes.com.br.