Por Fatimarlei Lunardelli
Professora, vice-presidente da Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs)
A erupção do Monte Tambora, na Indonésia, em 1815, deixou a terra irrespirável por meses, obrigando as pessoas ao confinamento. A história é conhecida: num castelo na Suíça, amigos de Lord Byron passaram esse período de isolamento contando e criando histórias de horror. Daquelas noitadas Mary Shelley escreveu Frankenstein e John Polidori, O Vampiro, clássicos de um gênero que surgiu na Modernidade e continua ecoando seus diversos sentidos nas mídias contemporâneas. O cinema gaúcho recém está despertando para o potencial desse tipo de narrativa, razão pela qual saudamos a estreia em longa-metragem do cineasta Lucas Cassales com Disforia, um drama psicológico com elementos sobrenaturais.
Uma brevíssima revisão do horror na cinematografia local destaca o escritor e cineasta Fernando Mantelli e seu curta Sintomas (2003), no qual uma mulher acredita estar grávida de um ser maligno. Em 2010, Davi de Oliveira Pinheiro fez a capital gaúcha ser invadida por zumbis em Porto dos Mortos. Notável é a filmografia de Felipe M. Guerra, com duas dezenas de curtas e longas independentes de baixíssimo orçamento que fazem sucesso no circuito underground de aficionados. São legiões de fãs que participam do Fantaspoa, festival de referência do cinema fantástico que já trouxe a Porto Alegre lendas do gênero e que, em 2020 chega à 16ª edição. Dennison Ramalho é outro nome a ser lembrado. Paulista criado na capital gaúcha cujo interesse pelo gênero o levou a ser assistente de José Mojica Marins, o maior nome do horror brasileiro, Ramalho dirigiu Morto Não Fala, produção da Casa de Cinema de Porto Algere que faz sucesso desde o lançamento, no ano passado.
Produzido pela Sofá Verde e pela Epifania Filmes, Disforia é um projeto mais ambicioso, que estabelece diálogo do fantástico num escopo dramático maior. O roteiro escrito por Cassales e Thiago Wodarski constrói um drama psicológico em que os conflitos emocionais dos personagens se exteriorizam em eventos inexplicáveis, uma vertente comum do horror artístico. O filme é bem-sucedido na construção do suspense a partir das sensações que provoca no espectador, em especial pela excelente direção de som de Tiago Bello. A história começa com a menina Sofia (Isabella Lima) e se desdobra contrapondo seu pai Paolo (Vinícius Ferreira) ao psicólogo Dário (Rafael Sieg), que passa a tratá-la por causa de surtos repentinos de violência.
É uma criança meiga, mas há um mistério em seu entorno: às vezes é possuída por uma força estranha e seu toque libera uma energia que perturba o psicólogo fragilizado por um trauma familiar.
As mulheres são figuras ausentes nesse cenário em que os homens precisam se virar sozinhos: a mãe da menina (Martha Brito) morreu no parto, e a esposa do psicólogo (Juliana Wolkmer) está internada numa clínica, em estado catatônico.
O medo está na ordem do dia como matéria-prima para a criação artística, seja da contaminação do vírus que se propaga rapidamente ou dos prejuízos decorrentes da quarentena planetária que estamos vivendo. Para o cinema, obrigado a suspender atividades, a crise pode ser definitiva.
Há indícios de acontecimentos graves na vida de Paolo e Dário, cuja evidente semelhança física compõe um paralelismo especular explorado narrativamente. O filme extrai sua substância dramática dos temores da paternidade no mundo atual, em que as instabilidades emocionais fazem dessa uma tarefa das mais desafiadoras. O desfecho é sombrio e, como sugere o título, “disforia”, vocábulo contrário a euforia, implica em sofrimento intolerável.
O longa explora com eficiência os clichês do horror artístico. A menina vive sob os cuidados da avó (Ida Celina), numa casa escura e fechada, um ambiente pesado que é controlado pela figura um tanto sinistra do pai. Já o psicólogo Dário circula pela cidade, em espaços abertos – oportunidade para que o fotógrafo Arno Schuh ofereça enquadramentos incomuns de Porto Alegre. O personagem se movimenta, mas não é livre, carrega uma angústia que contrasta com o mundo solar que o envolve. O filme, muito bem realizado, já é um título importante do cinema gaúcho, ainda que o roteiro deixe muitas questões em aberto, criando inconsistências que prejudicam a narrativa e a proposta dramática.
Lucas Cassales tem explorado o suspense e o sobrenatural desde que iniciou no cinema em 2009 e já teve seu talento reconhecido pelos prêmios ao curta-metragem O Corpo, vencedor do Festival de Gramado de 2015. Torcemos que siga explorando esse gênero cujo potencial está longe de se esgotar. O medo está na ordem do dia como matéria-prima para a criação artística, seja da contaminação do vírus que se propaga rapidamente ou dos prejuízos decorrentes da quarentena planetária que estamos vivendo. Para o cinema, obrigado a suspender atividades, a crise pode ser definitiva.
São tempos disfóricos!