Por Ivonete Pinto
Professora da UFPel, presidente da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine)
O Festival de Berlim encerrado no fim de semana passado (29/2 e 1º3) teve uma edição marcada pela comemoração de seus 70 anos, a entrada do diretor artístico Carlo Chatrian e da diretora executiva Mariette Rissenbeek e por números impressionantes: 22 mil convidados de 133 países. Também foi notada pelo cancelamento das presenças de cerca de 150 pessoas devido ao coronavírus, a maioria credenciados da China. No entanto, o resultado nas premiações não fugiu da tendência histórica de destacar filmes com repercussão política.
There is no Evil, de Mohammad Rasoulof, provavelmente não seria o mais cotado para ganhar o Urso de Ouro não fosse sua epiderme política. O diretor iraniano, ausente no evento, teve o passaporte confiscado e está proibido de filmar por dois anos. Uma penalidade do tipo a sofrida pelo conterrâneo Jafar Panahi, que venceu o mesmo festival com Táxi Teerã, em 2015. A segunda estatueta mais importante, o grande prêmio do júri, foi para o americano Never Rarely Sometimes Always, de Eliza Hittman. Mostra as agruras de uma jovem para fazer um aborto legal nos Estados Unidos. Afora sua temática sempre urgente, o aborto está na pauta da campanha presidencial deste ano por lá.
Sobre a produção iraniana, algumas palavras tentando driblar o spoiler. There is no Evil é composto por quatro histórias que têm como eixo central um soldado diante da tarefa de executar condenados à morte e os desdobramentos no caso de uma recusa. Tem alguns clímax fortes e, ao mesmo tempo, irregularidades narrativas e certas inconsistências. Na própria coletiva de imprensa, um jovem que cumpriu o serviço militar no Irã contestou a possibilidade de um soldado chegar na situação exposta no filme, pois a execução de presos tem sua divisão específica e os militares não são surpreendidos com a natureza de sua função. De qualquer forma, é uma ficção e certas invenções são necessárias como recurso dramatúrgico. Mas vai dizer isso para o regime iraniano... Naturalmente, Rasoulof fez um filme mirando plateias estrangeiras. Ele tinha plena consciência de que o filme seria proibido, pois, quando apresentou o roteiro para o Ministério da Cultura local, não obteve permissão para filmar. Filmou mesmo assim, numa atitude de guerrilha, como muitos de seus compatriotas fazem hoje em dia.
O júri, presidido pelo ator Jeremy Irons, entendeu a força política que a obra ganharia com o prêmio e deu a ele o Urso de Ouro – o mesmo concedido a Tropa de Elite em 2008. Prêmios em geral têm um bom grau de subjetividade, e, em Berlim, o teor artístico às vezes fica em segundo plano. There is no Evil é relevante porque atinge todo um questionamento sobre o cumprimento cego a ordens que violam direitos humanos. Outro júri, outro festival, poderia tranquilamente eleger The Woman Who Ran, do sul-coreano Hong Sang-soo. Uma pequena obra-prima envolvendo conflitos existenciais, com um estilo muito próprio e uma linguagem inspirada (quando estrear no Brasil, lembrem de observar a cena do gato). O trabalho de Sang-soo foi reconhecido, e coube ao jurado Kleber Mendonça Filho (diretor de Bacurau) lhe entregar o prêmio de melhor direção.
O Extremo Oriente ainda foi destaque com o malaio Tsai Ming-Liang. Em Days, filmado na Tailândia, mais uma vez ele explora os planos longos, o tempo estendido e a ausência de diálogos. Brindou a plateia com uma quente cena de sexo que atiça a imaginação sem mostrar anatomias já conhecidas (muitíssimo ao contrário de outro concorrente, o russo Dau.Natasha, de Ilya Khrzhanoviskiy). Por sua vez, o cambojano Rithy Panh recorreu ao documentário de arquivo para lembrar – e sempre é preciso lembrar – as atrocidades das guerras. Em Irradiated, a força das imagens até dispensaria a narração poética. O excesso de voz off talvez tenha comprometido o vigor do filme.
Por fim, é preciso, mesmo que rapidamente, registrar os brasileiros nesta edição do festival. Tendo Eduardo Valente à frente da seleção nacional, 19 produções foram distribuídas em diversas seções, incluindo a competição oficial com Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Carú Alves de Souza, com Meu Nome é Bagdá, venceu a mostra Generation, que teve 59 filmes na programação, sendo 58% deles dirigidos por mulheres (a representação de diretoras é assunto que mereceria outro artigo!).
Não menos importante, o Rio Grande do Sul, também nessa mostra, esteve presente com o longa de baixíssimo orçamento Irmã. A dupla de diretores Luciana Mazeto e Vinícius Lopes sensibilizou principalmente a plateia mais jovem e louca para saber como andam as lutas feministas em tempos de “menino veste azul” etc. A trama, rodada na minúscula Mata, é uma contribuição para a consciência de gênero. Concentrado em duas protagonistas em torno de 17 e 12 anos, gera combustível para inúmeros debates que devem ocorrer com seu lançamento garantido para este ano. Tomara que possa ser exibido também no Ensino Médio, já que qualquer transformação da sociedade precisa passar pela escola. Ou não?