São 22h45min de uma segunda-feira de dezembro e há 10 pessoas sentadas em cadeiras brancas de plástico formando uma roda no Auditório José Antônio Picoral, em Torres.
Nas duas horas e meia anteriores, havia sido projetado ali o onírico e sensorial Cidade dos Sonhos (2001), filme de David Lynch. Embora o município do Litoral Norte atraia turistas inclusive de fora do país no verão por suas praias, ainda há quem veja como um dos pontos altos da semana aquele encontro. Trata-se do Cineclube Torres.
– Atores fantásticos, filme perfeito. Mas me confundiu demais. O que é sonho ou realidade? – questionou uma participante da roda, na faixa dos 50 anos, que é a média
de idade dos outros integrantes.
Didático e eloquente, o italiano Tommaso Mottironi,
52 anos, explica que é um filme que acompanha uma aspirante a atriz e uma mulher desmemoriada, embaralhando o que é real e o que é delírio. Foi Tommaso que, em 2011, criou o Cineclube Torres.
– Uma lista da BBC aponta como o número 1 do século 21, mas para mim não tem essa colocação. Temos que dar um jeito para agradar a todos os públicos. Programador é um pouco isso – confessa o coordenador do cineclube, com um sotaque português de Portugal.
Formado em Arquitetura, mas trabalhando como produtor cultural e professor de idiomas, Tommaso nasceu em Roma e viveu em diferentes países – como em Portugal. Sempre foi adepto de cineclubes (prática em que um grupo de pessoas se encontra com periodicidade para assistir e debater uma obra audiovisual) nas diferentes localidades que morou.
Ele relata que se mudou em 2006 para Torres influenciado por pessoas da cidade. Depois de um tempo, promoveria o hábito no litoral gaúcho.
– Tinha esse anseio de criar um ponto para que as pessoas pudessem se encontrar e exibir alguns filmes para debatê-los. Este espaço estava disponível (Auditório José Antônio Picoral) e montamos uma associação sem fins lucrativos – diz Tommaso.
Contando com dezenas de associados e cobrando a anuidade simbólica de R$ 30,
o Cineclube Torres realiza seus encontros às segundas-feiras à noite, no Auditório José Antônio Picoral. O espaço pertence à Associação dos Amigos da Praia de Torres (SAPT) e é alugado pela prefeitura, que o cede para as exibições. Porém, o executivo municipal está revisando o contrato de locação e, caso não haja acordo, o cineclube terá de procurar outro local para funcionar em 2020.
Cineclubistas
Na programação do cineclube, são priorizados filmes fora do circuito comercial – mais experimentais, autorais ou do cinema de arte. Toda semana são apresentadas obras dentro de uma temática, como distopia, natureza, músicas, entre outras. Em dezembro, o ciclo abordado
era “o cinema no cinema”.
A sessão de Cidade dos Sonhos foi assistida por 16 pessoas – um público considerável para uma sessão de segunda
à noite no litoral. Segundo Tommaso, as exibições costumam oscilar entre 10 e 40 espectadores. A faixa etária parte dos 30 anos para cima. Uma característica comum do cineclubista de Torres
é ser ex-morador da Capital, como o servidor público Emiliano Botelho, 42 anos. Quando vivia em Porto Alegre, costumava frequentar o circuito de cinema alternativo, o que reencontra com o cineclube.
– A seleção de filmes que o Tommaso faz é muito boa: senegalês, japonês, francês.
As discussões são enriquecedoras – afirma o morador de Torres há um ano e meio.
O bancário aposentado Larri Gomes, 58 anos, vive em Torres há três anos e frequenta o cineclube desde seu primeiro mês na cidade. Para Larri, é uma maneira de se reconectar com o cinema fora do circuito:
– Podemos ver aqui esses filmes com qualidade daqueles que passam no Guion, na Casa de Cultura, que fazem a gente pensar e trazem uma mensagem.
Aqui a gente amplifica significados. Revê algumas posições. Reencontra as pessoas na semana seguinte. Isso é coisa de cidade pequena
JORGE HERRMANN
Cinéfilo
Vivendo no município litorâneo desde março, a paraense Ana Maria dos Reis Pereira, 64 anos, encara os encontros como uma maneira de se tornar cidadã torrense.
– O cineclube me permitiu o ritual de passagem de turista para moradora. Traçar relações a partir daqui – diz a socióloga e psicóloga.
O artista plástico e músico Jorge Herrmann,
60 anos, mora há sete anos em Torres. Começou a frequentar o cineclube tão logo chegou à cidade. Além de exaltar a seleção de filmes, Herrmann destaca a experiência coletiva de assistir a um filme.
– Isso é fundamental. Rir junto, chorar junto. Aqui a gente amplifica significados.
Revê algumas posições. Reencontra as pessoas na semana seguinte. Isso é coisa de cidade pequena – pontua.