Nem tudo está na Netflix, na Amazon Prime Video, no Globoplay ou no Now. E nem estará na vindoura Disney+. Os filmes clássicos assinados por Kurosawa, Fellini, Bergman e outros mestres do cinema costumam ser ignorados nos catálogos das maiores plataformas, focadas em lançamentos ou produções próprias.
No Brasil, serviços de streaming como Oldflix e Darkflix, este focado no terror, buscam atender a essa demanda, mas ainda de forma incipiente. É o DVD que contempla esse filão.
– Tenho Netflix, mas é um serviço muito limitado. Em termos de qualidade, é sofrível. Só há filmes medianos. Um cara que gosta de cinema vai se se chatear rápido – aponta o professor universitário Celso Rodrigues, frequentador da locadora E o Vídeo Levou.
Cliente da Twin Video, Verônica Agustini devolvia Capitã Marvel em uma tarde de terça-feira de julho e retirava O Gênio e O Louco.
A corretora de imóveis de 43 anos não se satisfaz com as plataformas de streaming, nem com a TV a cabo. Vai duas vezes por semana à loja para alugar e, às vezes, comprar algum título.
– Tenho Netflix, mas é limitada. A TV cabo só repete, repete, repete – enfatiza. – Sei que essas plataformas online existem, mas sou antiga (risos). Não é o meu barato.
Verônica conta ser fã de diretores como Quentin Tarantino e Pedro Almodóvar. Costuma escolher os títulos que vai alugar conforme o humor que estiver no dia:
– Gosto muito de vir aqui e conversar sobre filmes. Poderia trabalhar para eles se quisessem, conheço tudo (risos).
Era o aniversário de 43 anos de Ricardo Livi. Como presente a si mesmo, ele se deslocou de Tramandaí para a Twin Video em uma terça à tarde. Era sua primeira vez no estabelecimento. Proprietário de uma pousada, Livi tinha em sua cesta filmes como A Praia, Condenação Brutal e Godzilla.
– Tenho mais de 300 títulos na minha coleção. Gosto de ter o contato com a mídia. Colecionar é ter memórias – reflete.
Ricardo não tem assinatura de plataforma de streaming ou de TV a cabo. Pretendia levar uns 15 DVDs naquela tarde. Quando a reportagem se despediu dele, acumulava mais de 30 filmes na cesta.
Denise Noah, proprietária da Twin Video, destaca:
– Sábado enche muito, vem gente do Interior. É o dia que tem mais movimento. Pessoal vem com seu chimarrão, com a família, vira um prazer a mais. Tem gente que vem de manhã, almoça nos arredores e retorna à tarde. Ainda há um grande público para o DVD, por incrível que pareça. Pessoal entra aqui e pensa: “Meu Deus, isso aqui é um paraíso”.
Poderia, então, o DVD se tornar um objeto de culto e ter uma sobrevida assim como o disco de vinil? Para Francisco Gaspar Franco, proprietário da Twin Video ao lado de Denise, sim:
– Já é, com certeza. Entrando na Twin Video você entende.
Por outro lado, Alvaro Bertani, proprietário da E o Vídeo Levou, não acredita nessa possibilidade.
– O DVD é uma tecnologia ultrapassada. A qualidade em 4K é melhor. Não tem aquele argumento do vinil do som ser melhor. Todo mundo sabe que o DVD tem uma imagem pior. É um produto que tende a desaparecer. Dificilmente as produtoras vão voltar atrás – avalia.
Alvaro ressalta que sua locadora ainda tem clientes para a demanda do DVD, mas crê que irá faltar produto:
– As distribuidoras de DVD estão fechando. Já trabalhei com umas cem fornecedoras, hoje deve ter 15. As empresas independentes estão fechando, não têm mais interesse em lançar mídia física. Estamos com falta de produto. Nosso problema é esse. Eu vou ficar no mercado até as produtoras ainda forneceram mídia.
Distribuidoras encontram seu público com clássicos e caixas temáticas
Se o filme clássico, de culto ou fora do nicho comercial dificilmente está nas plataformas de streaming, o público ávido por essas produções ainda pode recorrer aos DVDs, certo? Não é bem assim. As distribuidoras de filmes de arte estão parando de lançar mídia física – a Imovision, por exemplo, anunciou em março que iria interromper os lançamentos em DVD.
Enquanto isso, as distribuidoras focadas no mercado de home video brigam por espaço. A Versátil, criada, em 1999, lança clássicos do cinema e caixas temáticas. Costumava atender mais às locadoras, mas precisou se reinventar.
– Nos últimos 10 anos, o home video é um mercado que vem sofrendo vários baques. Para se manter, a Versátil mudou de perfil. Trocou um pouco os filmes clássicos e passou a trabalhar com gêneros específicos, como noir, western, terror, entre outros – relata André Melo, proprietário da distribuidora.
Já a Obras Primas do Cinema é uma distribuidora com foco nos colecionadores, trazendo em seu catálogo produções de grandes diretores e gêneros. Valmir Fernandes, proprietário da empresa, ressalta que seu negócio respira mesmo com a crise:
– Cada vez que passamos um ano de vida, comemoramos bastante. Não vendemos muito, mas temos um público fiel. Nosso problema hoje é de achar nossos clientes. Tem um nicho legal de colecionadores, mas há dificuldade para eles acharem meu produto. Os sites e as livrarias não estão acreditando no mercado. O mercado em geral está muito pessimista.
No ano passado, as livrarias Saraiva e a Cultura, que estão entre os principais clientes do setor de home video, entraram em recuperação judicial, o que balançou as distribuidoras pequenas.
– A Cultura era o nosso maior cliente. Era um público muito fiel de colecionadores. Fiquei muito assustado, achei que não ia conseguir passar essa fase em seis, sete meses. Foi muito investimento nosso – destaca Fernandes.
Os distribuidores estimam que seu público é parecido com o que ainda vai à locadora: colecionador na faixa dos 45 a 65 anos e estudante de cinema entre 20 e 25.
– O colecionador sempre vai existir. Minha preocupação é a fábrica ter demanda. Que as majors (grandes empresas do cinema) continuem produzindo mídias físicas para as fábricas continuarem injetando discos. Sem as fábricas, não consigo produzir meu disco – estima Valmir. – Se essas fábricas continuarem resistindo, minha empresa vai sobreviver.
André compara a situação do home video com o livro físico:
– O livro não acabou com a chegada da internet e do e-book. Ainda existe e é consumido, muita gente prefere ter esse contato direto. Quando a gente fala no livro, entendo assim com o vídeo também. O consumidor ainda gosta muito de pegar o produto na mão, abrir a caixinha. Temos clientes inclusive que compram duas edições, uma para consumir e outra para guardar.
O proprietário da Versatil lembra que as plataformas de streaming disponibilizam e retiram conteúdo com frequência:
– Centenas de filmes são perdidos por conta desse movimento. Quando você tem a mídia física, ainda, pode rever quando quiser Temos uma crença de que o DVD vai se perpetuar e continuar existindo independentemente de qualquer movimento que aconteça.
Dados do setor
- Com crescimento de 1,6 milhão (+5,49%) nos últimos 12 meses, a banda larga fixa se fez presente em 31,8 milhões de domicílios brasileiros no mês de maio de 2019, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
- O índice de pessoas que assiste vídeos online passou de 49% para 71% entre 2012 e 2017, segundo o Centro de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
- A fabricação de aparelhos de DVDs caiu de 1,5 milhão em 2016 para 630 mil em 2018, conforme a Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros).
- As operadoras de TV paga perderam 549 mil assinantes em 2018, fechando o ano com 17,5 milhões de contratos ativos, segundo a Anatel. A redução representou uma queda de 3% na base de usuários. Esse movimento mantém o encolhimento do serviço, que chegou a ter 19 milhões de clientes em 2015.
- Em 2017, o percentual dos brasileiros que acessam à internet com a finalidade de assistir a vídeos, programas, séries e filmes chegou a 81,8%, segundo a pesquisa TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação).
- A Netflix terminou 2018 com mais de oito milhões de assinantes no Brasil (6% de sua base de assinantes no mundo).