A portaria do governo federal que determinou o cancelamento do edital para projetos sobre diversidade sexual criticado por Jair Bolsonaro foi chamada de "convite ao diálogo" pelo presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Christian de Castro. A declaração foi dada nesta semana, durante o Festival de Cinema de Gramado, na serra gaúcha.
A afirmação de Castro provocou indignação da plateia formada por profissionais da indústria audiovisual, que participavam do Gramado Film Market, evento que faz parte da programação do festival.
Após o cancelamento do edital, o secretário especial da Cultura, Henrique Pires, deixou o cargo dizendo não admitir que o governo imponha "filtros" na cultura. Segundo ele, a suspensão do edital foi apenas a "gota d'água" de uma série de tentativas do governo de impor censura em atividades culturais.
O presidente da Ancine disse que o fim do edital se tratava de um "convite ao diálogo" após ser questionado pelo diretor de cinema Henrique de Freitas Lima.
— Fiz uma intervenção e chamei atenção sobre a portaria. A resposta foi que ela deveria ser encarada como um convite ao diálogo — disse Lima.
O cineasta ainda questionou o que poderia ser feito, então, pelos profissionais. A resposta do presidente foi um pedido por menos "enfrentamento".
— Me senti em um filme distópico. Diálogo pressupõe interação, que não existe, e respeito, que também anda escasso. É no mínimo perturbador ou, melhor, surpreendentemente inovador classificar essa portaria como uma proposta ao diálogo — afirmou Mariza Leão, que produziu as comédias Meu Passado me Condena (2013) e a sequência De Pernas pro Ar (2010, 2012) e estava no encontro.
A produtora se manifestou em público dizendo que o presidente da Ancine, ao contrário do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que saiu em defesa da ciência quando o governo disse que os dados não eram corretos, não defendeu o audiovisual brasileiro diante do cancelamento do edital.
Em nota, a Ancine afirmou que "uma produtora presente no local, de forma desrespeitosa, interrompeu uma resposta do diretor-presidente com críticas e ofensas. Imediatamente após se pronunciar, ela se retirou do recinto de forma abrupta, impossibilitando que Christian [Castro] respondesse as alegações". A nota ainda diz que "o diretor-presidente da Ancine se mostrou aberto ao diálogo durante toda a sua participação no festival".
Outros tópicos da apresentação de Castro causaram preocupação nos profissionais do setor. Um deles é a indicação de substituir o investimento (que faz da Ancine um tipo de "sócia" do projeto, participando dos resultados) por financiamento, ou seja, por empréstimos.
— Isso seria inviável. É quase como um banco. O dinheiro do Fundo Setorial não é para isso. Não existe mercado para recuperar e devolver um empréstimo — explicou o diretor de cinema Henrique de Freitas Lima.
O cineasta Rogério Rodrigues, que preside o Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio Grande do Sul (Siav), concorda que, se o investimento passar a funcionar como crédito, a indústria será prejudicada.
— O setor representou 0,46% do PIB. O audiovisual devolve muito mais do que o governo investe — argumenta Rodrigues.
O presidente da Ancine também apresentou, no evento, o plano de investir mais nas empresas e menos nos projetos audiovisuais específicos, outra ideia que também causou estranheza entre os profissionais.
— Isso incomodou muito. O objetivo de qualquer proponente para realizar projeto não é investir na própria empresa, é investir no filme. Se o orçamento é de R$ 3 milhões, não queremos R$ 500 mil para empresa. Tudo é para o filme, para pagar profissionais, câmeras, equipamentos. Por isso, as empresas não são milionárias. O objetivo não é enriquecimento — disse Daniela Strack, assistente de direção e presidente da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC/RS).