A 76ª edição do Festival de Veneza começou nesta quarta-feira (28) em clima tenso. Não pelo filme de abertura, La Verité, do japonês Hirokazu Koreeda, recebido sem grande ânimo na primeira sessão, mas pela troca de farpas entre o diretor do evento, o italiano Alberto Barbera, e a presidente do júri oficial, a argentina Lucrecia Martel.
Na conversa com a imprensa realizada pela manhã, Martel foi indagada sobre sua opinião em ter que julgar um filme do cineasta Roman Polanski, J'Accuse, que compete ao Leão de Ouro, prêmio principal da mostra.
Houve muitas críticas à opção de Veneza por incluí-lo na disputa — em tempos de #MeToo, a carreira e o prestígio do cineasta franco-polonês vivem à sombra de um crime cometido em 1977, quando drogou e molestou sexualmente uma jovem de 13 anos nos Estados Unidos. Outras mulheres já o acusaram de abuso desde então, mas sem apresentarem provas.
— Não separo um homem de sua obra. O que é interessante é justamente que, nela, transpareça o homem. A presença de Polanski na competição me incomodou, mas consultei escritoras e especialistas sobre o tema. No caso (do abuso sexual dos anos 1970), a vítima já considerou o caso encerrado — disse a argentina, referindo-se ao perdão oficial que Samantha Geimer deu ao cineasta, alguns anos após ele fugir dos EUA.
As autoridades norte-americanas, no entanto, ainda hoje consideram Polanski um foragido e o diretor não pode entrar naquele país, sob risco de ser imediatamente encarcerado.
— Eu me solidarizo com o que ela (Samantha) sofreu. Vou ver o filme, mas não vou comparecer à sessão de gala. Não poderia aplaudi-lo de pé — disse a cineasta. — Mas me parece acertado que o filme esteja aqui. Em um lugar como este é que diálogos assim precisam acontecer — suavizou em seguida.
— Sou bem convicto de que é preciso fazer a distinção entre o homem e o crime — opinou Barbera, logo depois. — Grandes artistas também fizeram isso e, ainda assim, admiramos suas obras.
As cotas não trazem satisfação a nenhuma mulher, mas não há outra forma de fazer essa transição (a uma sociedade menos machista).
LUCRÉCIA MARTEL, SOBRE COTAS PARA FILMES DIRIGIDOS POR MULHERES NO FESTIVAL DE VENEZA
Outro assunto que gerou embate entre Martel e Barbera foi a exigência de alguns grupos por haver uma espécie de cota de obras femininas nos festivais. Neste ano, em um total de 21 obras na disputa, Veneza conta apenas com dois filmes em competição dirigidos por mulheres: The Perfect Candidate, da saudita Haifaa Al Mansour, e Babyteeth, da neozelandesa Shannon Murphy.
— As cotas não trazem satisfação a nenhuma mulher, mas não há outra forma de fazer essa transição (a uma sociedade menos machista) —
disse Martel, destacando que etnias não brancas e classes sociais menos abastadas também são historicamente sub-representadas no cinema e nos festivais pelo mundo.
Barbera voltou a discordar:
— Sempre fui absolutamente contra cotas na escolhas de filmes para um festival. Poderia ser ofensivo porque se sobreporia ao único critério que deveria haver para escolher filmes:
o da qualidade.
Martel pediu a palavra novamente:
— Deveríamos fazer um experimento: (um festival com) 50% de filmes dirigidos por mulheres e 50% por homens e ver o que acontece. Não me parece mal fazer isso, depois de 76 anos (de Veneza se valendo apenas do critério da qualidade).
Diante da alfinetada, Barbera voltou a se manifestar:
— Se eu encontrasse 50% de filmes (com qualidade), teria feito isso. Mas apenas 23% dos filmes inscritos eram dirigidos por mulheres e gostaríamos de achar filmes (aceitáveis para a competição) ali. Esses festivais que têm 48% de filmes de mulheres, sendo que a muitos deles já assisti... Não sei que critérios de escolha utilizam.
A edição de 2019 do Festival de Veneza segue até o dia 7 de setembro. Sem filmes dirigidos por brasileiros na competição, a programação conta, no entanto, com dois longas
co-produzidos pelo brasileiro Rodrigo Teixeira, da RT Features: Ad Astra, do norte-americano James Gray, e Wasp Network, do francês Olivier Assayas.