Quando Lucrecia Martel, 51 anos, expressa admiração pelos diretores que desafiam a realidade, talvez esteja falando de si mesma.
Embora seja conhecida quase que exclusivamente pelos cinéfilos, a argentina é considerada uma das cineastas mais proeminentes de seu país, quiçá da América Latina. Em um artigo sobre seu primeiro longa, "O Pântano", o estudioso David Oubiña elogiou "um repertório que, desde o início, reflete uma perfeição rara".
"Zama", seu novo filme, e o primeiro em quase uma década, vem sendo recebido com a mesma altíssima consideração. Manohla Dargis, crítica do New York Times, disse que incluiria o drama histórico em seu "festival dos sonhos", e Xan Brooks, do Guardian, classificou-o como "uma obra-prima atípica".
Embora em seus trabalhos anteriores, Martel – que, com suas roupas despojadas, cabelo comprido e óculos de sol imensos quase poderia passar por uma estudante – tenha se concentrado basicamente nas relações familiares, ela não se vê como criadora de filmes "femininos". "A comédia romântica é minha inimiga", revela, através de intérprete, poucos dias depois da exibição de "Zama" no Festival de Nova York, em outubro passado.
Dada a originalidade de seu estilo peculiar – o fascínio por quase-documentários sobre famílias grandes e a tendência a registrar a inércia provinciana –, Martel empolga e confunde o público. Seus filmes, vívidos e, ao mesmo tempo, fugidios, são fragmentados e observacionais, agitados e entrópicos na mesma medida, povoados por personagens dados a acidentes, notáveis pela ausência geral de autoconhecimento.
É tentador atribuir a intimidade e facilidade em dirigir elencos amplos à própria experiência. Nascida em Salta, cidade situada no noroeste da Argentina, entre o sopé dos Andes e os limites de uma floresta tropical, ela tem seis irmãos – e conta que sempre foi a encarregada de fazer os filmes caseiros da família próspera.
Os longas da chamada "Trilogia de Salta" – "O Pântano", que estabeleceu sua reputação, ao ser exibido no Festival de Berlim de 2000, "A Menina Santa" e "A Mulher Sem Cabeça", que foram lançados em competições em Cannes – têm um humor ácido e, às vezes, dramas domésticos horrorosos. Suas histórias se desenvolvem como que em uma estufa, a partir da composição de refrões repetidos e microincidentes que parecem não ter relação entre si.
"A Menina Santa" (2004) se passa quase todo em uma convenção médica realizada em um hotel familiar caindo aos pedaços e mostra em detalhes a missão que uma adolescente assume para si: a de redimir um médico de meia-idade que conheceu no meio de uma multidão. "A Mulher Sem Cabeça" (2009) mostra a reação de uma mulher bem de vida a um acidente de carro que pode ter causado, e no qual pode ter atingido alguém ou alguma coisa.
Martel evita definir tomadas e às vezes interrompe a ação, favorecendo as transições abruptas. Seu enquadramento distorcido e uso do foco, que ela atribui sorrateiramente à miopia, podem incomodar alguns. Seu filme mais radical em termos de formato, "A Mulher Sem Cabeça", é propositalmente desorientador, colocando o público na posição da protagonista desnorteada.
Depois dos filmes de Salta, Martel decidiu mudar o ritmo: o projeto seguinte foi uma adaptação do romance gráfico de Héctor Germán Oesterheld, "O Eternauta", uma crítica sob o rótulo de fantasia de ficção científica ao autoritarismo argentino de um autor que aparentemente morto pela ditadura, durante a "guerra suja", ocorrida de meados dos anos 70 aos 80. Tendo crescido durante o mesmo período, Martel o descreve como uma versão mais sinistra de seus filmes: "As coisas aconteciam sem explicação, principalmente para as crianças", afirma, citando carros misteriosos, marcas de sangue e até cadáveres nas ruas.
Depois de dois anos desenvolvendo o roteiro, sem conseguir financiamento e brigando para conseguir os direitos, Martel desistiu da empreitada. Foi quando descobriu o romance de 1956 de Antonio Di Benedetto, "Zama", que ficara esquecido em sua estante durante cinco anos antes que resolvesse levá-lo na viagem que fez pelo rio Paraguai, onde se passa grande parte da história. Quando pergunto se viu um filme ali, ela responde em inglês: "Na mesma hora!".
Se seus primeiros filmes brigavam com a realidade, no drama de época (fim do século XVII) feito por US$3,5 milhões – orçamento modesto, mas correspondente a mais que o dobro do de "A Mulher Sem Cabeça" – a diretora desafia a si mesma. Passou quatro anos escrevendo o roteiro e arrecadando verba. (Oito países ajudaram a financiar o filme e entre os produtores estão Pedro e Agustín Almodóvar, Gael García Bernal e Danny Glover.) As filmagens, que duraram pouco mais de dois meses, foram difíceis, castigadas pelo mau tempo; a pós-produção atrasou por causa de sua doença. (Martel conta que fez tratamento para um câncer, mas já está em remissão.)
Como se não bastasse "Zama" ser seu primeiro filme em tecnologia digital, o primeiro rodado fora de Salta, o primeiro drama de época e primeira adaptação, é também o primeiro centrado em um homem – embora, como ela observa, Don Diego de Zama, um representante sul-americano da Espanha imperial, frustrado, indicado para um posto nos confins do interior do Paraguai, se parece com suas personagens femininas. Interpretado pelo mexicano Daniel Giménez Cacho em um estado de dignidade ferida, Zama é um provinciano confuso, frustrado, em negação constante, apegado a um senso precário de superioridade cultural.
Como um drama kafkiano de um homem incapaz de conseguir sua transferência, "Zama" também transmite a mesma sensação de deslocamento e torpor da Trilogia de Salta. Belo e desconcertante, às vezes etéreo, o filme tem uma sequência final que lembra as aventuras de Werner Herzog, como "Aguirre, a Cólera dos Deuses" e "Fitzcarraldo" – mas Martel não vê isso como um elogio. "Os filmes dele me incomodam", desabafa, comentando o que vê como "o tratamento irresponsável de animais e indígenas".
O crítico de cinema veterano e diretor de festival Eduardo Antin, que escreve sob o pseudônimo de Quintin, observa que, por mais fiel que o filme seja ao livro, Martel deixou o material "alinhado com seus interesses políticos, trazendo os detalhes para primeiro plano". Di Benedetto se concentrou em Zama e seu ambiente supostamente europeu, basicamente ignorando os escravos e os índios da colônia; já Martel inclui africanos e nativos, geralmente em figuras femininas, praticamente em todos os quadros. A história de Zama é também a delas. "Tamanha mudança exige muita força de vontade e pensamento preciso", escreveu Antin em um e-mail – como também serve para definir o final horroroso, no estilo de "O Coração das Trevas".
Martel quer retornar a Salta, onde está trabalhando em um documentário sobre Javier Chocobar, ativista indígena morto em uma disputa de terras em 2008. "A história do nosso país é fragmentada", afirma, referindo-se à identificação argentina com a Europa. "É o conflito de todo homem branco", crucial ao entendimento do anti-herói existencial Zama.
Por J. Hoberman