E se os Beatles não tivessem existido? Na prática, é quase impossível calcular o impacto dos Fab Four na cultura pop — uma revolução que vai das letras das músicas, graças a eles livres para falar sobre subir no ônibus ou pentear o cabelo, a alguns dos primeiros megashows de que se tem registro.
A pergunta guia Yesterday, que estreia nesta quinta (29). Mas, no roteiro de Richard Curtis (de clássicos como Quatro Casamentos e um Funeral e Um Lugar Chamado Notting Hill), a resposta é menos objetiva, por assim dizer.
Ali, a especulação serve de pano de fundo para o romance entre o aspirante a músico Jack Malik e a professora primária Ellie Appleton. A relação entre os dois se complica quando Malik, único a lembrar as canções do quarteto depois de um blecaute planetário, vira uma estrela instantânea.
Apesar da voltagem pop, Yesterday é mais um representante de um gênero antigo entre os fãs de ficção científica, o da história alternativa. Sua ideia básica é encarar a linha do tempo histórica e confrontar eventos decisivos com a mesma questão do início deste texto: "E se?".
[Confira o trailer de Yesterday]
Um dos exemplares mais conhecidos da vertente é O Homem do Castelo Alto, obra de Philip K. Dick que ganhou uma série da Amazon. No enredo, os Estados Unidos têm o território ocupado por Japão e Alemanha depois de serem derrotados na Segunda Guerra.
Nos últimos anos, porém, o gênero vem conquistando cada vez mais autores sem relação com a ficção científica.
Quentin Tarantino repetiu a estratégia de Bastardos Inglórios, sobre aquele mesmo conflito, em seu novo título, Era uma Vez em... Hollywood, que revisita o assassinato de Sharon Tate na Los Angeles do final dos anos 1960.
Livros recentes também embarcam no jogo, como The Underground Railroad: os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, que aborda o conflito entre o sul escravocrata e o norte capitalista antes da guerra civil norte-americana, e Máquinas como Eu, de Ian McEwan, que imagina os desdobramentos da derrota da Inglaterra na Guerra das Malvinas.
Mestre em literatura pela PUC, Marcos Vinícius Almeida acha que a retomada do gênero tem origem em uma "fome de história" mais generalizada por parte do público.
Lembrando que tanto a ficção histórica quanto os livros históricos propriamente ditos há tempos frequentam as listas dos mais vendidos, ele diz que a história alternativa é uma forma de dar uma marcha à ré e entender como chegamos no "horizonte apocalíptico" de hoje.
Para um dos pioneiros do segmento no país, o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, o gênero demorou a sair do reduto da ficção científica porque muitas de suas narrativas são inspiradas em histórias nacionais. Os Estados Unidos, por exemplo, vivem retornando à Guerra de Secessão.
Mas, destaca Lodi-Ribeiro, a Segunda Guerra é recorrente nas narrativas do gênero.
O escritor Miguel Sanches Neto parte das reverberações do conflito no Brasil em A Segunda Pátria. Na trama, um negro e uma alemã vivem uma paixão proibida quando os estados da região Sul passam a obedecer às leis nazistas.
O escritor afirma que o romance, publicado há quatro anos pela Intrínseca, foi um alerta para os perigos de movimentos como o separatista O Sul é o Meu País que então se popularizavam na região.
É uma função quase educativa a que muitas histórias alternativas se prestam, comenta Almeida.
— Em tempos de fake news, quando a verdade está esfacelada, o papel da ficção se tornou falar a verdade.