A suspensão do edital de financiamento de projetos direcionados à diversidade em TVs públicas representa, até aqui, o ápice da polêmica envolvendo o governo de Jair Bolsonaro e o setor audiovisual. A intervenção culminou na demissão do secretário nacional na Cultura, Henrique Pires, na quarta-feira (21), que deixou o cargo engrossando o coro dos que veem no ato presidencial o braço da censura.
Os mecanismos de fomento à cultura estão no alvo de Bolsonaro desde a campanha eleitoral, com críticas e propostas de mudanças à Lei Rouanet (mecanismo de fomento cultural que não tem relação com a indústria audiovisual). Com o governo empossado, a pasta da Cultura perdeu o status de ministério e virou secretaria ligada ao Ministério da Cidadania, a Rouanet foi reestruturada (passou a se chamar Lei de Incentivo à Cultura) com o estabelecimento de tetos de financiamento e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), responsável pela regulação e fomento de filmes e séries, entrou em campo como a bola da vez.
Em seis tópicos, entenda os impasses envolvendo o setor audiovisual brasileiro:
1. Fiscalização do TCU
No final de março, a Ancine recebeu um ultimato do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou a suspensão do repasse de recursos públicos para o setor audiovisual caso a agência não mudasse a forma de prestação de contas. Através de uma auditoria feita em 2017, o órgão constatou irregularidades na fiscalização das finanças, em projetos com excesso de custos e falta de checagem nas contas das produções.
O presidente da Ancine, Christian de Castro, ordenou, em abril, que a liberação de novos recursos e publicação de editais para a indústria audiovisual fosse paralisada até a resolução desse impasse. Os nós entre Ancine e TCU seguem atados e o setor de produção de filmes e séries no Brasil ainda não ganhou um centavo de incentivo em 2019, já que a linha de financiamento através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), aberta sempre no início de cada ano, ainda não foi liberada.
2. Bruna Surfistinha
Temas envolvendo o futuro do audiovisual brasileiro marcaram o evento dos 200 dias do governo Bolsonaro, em julho. Na cerimônia, o presidente disse que queria transferir a sede da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília e criticou o patrocínio federal a produções audiovisuais que, segundo ele, fazem “ativismo”. Na ocasião, Bolsonaro colocou ainda mais lenha na fogueira:
— Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá. Não somos contra essa ou aquela opção, mas o ativismo não podemos permitir em respeito às famílias.
Na mesma cerimônia, Bolsonaro também mudou a composição do Conselho Nacional de Cinema, responsável por elaborar a política para o setor, diminuindo a participação de representantes da indústria audiovisual e dando a maior parte das cadeiras para ministros do governo. O presidente também passou a responsabilidade do órgão do Ministério da Cidadania para a Casa Civil.
3. Fogo amigo
O ex-ator pornô e deputado federal Alexandre Frota, eleito por São Paulo pelo PSL, mesmo partido de Bolsonaro, também se envolveu na polêmica. Após o impasse entre o TCU e a Ancine, Frota protocolou na Comissão de Cultura da Câmara um pedido para afastar o diretor-presidente da Ancine. Recentemente, Bolsonaro foi alvo de fogo amigo do deputado, que passou a criticar a postura do presidente. O deputado acabou expulso do PSL. Ao participar do programa Roda Viva, na última segunda-feira (19), Frota alfinetou:
— Bolsonaro deveria deixar a Ancine com pessoas que são do mercado, que entendem. A Ancine é necessária para o audiovisual do país. Acho que a cultura está passando por um processo muito difícil.
Alexandre Frota em entrevista ao Roda Viva:
4. Edital suspenso
A suspensão do edital de projetos sobre diversidade voltados às TVs públicas (que abarca produções com a temática LGBT+) veio após Bolsonaro criticar alguns projetos pré-selecionados durante uma transmissão ao vivo, no último dia 14. No vídeo, o presidente disse que “garimpou” obras que buscavam autorização da Ancine para captar recursos por meio da Lei do Audiovisual e, entre elas, citou as do segmento LGBT+ – Afronte, Transversais, Religare Queer e Sexo Reverso.
Cada título poderia ser contemplado com verbas entre R$ 400 mil e R$ 800 mil, via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Mas esse recorte específico criticado pelo presidente faz parte de um total de 80 projetos que seriam contemplados no edital suspenso, lançado em março de 2018, com recursos previstos de R$ 70 milhões. A diversidade proposta engloba 12 categorias, entre elas raça, religião e meio ambiente.
5. Repercussão
A polêmica do edital suspenso e a consequente queda do secretário nacional na Cultura, Henrique Pires (ele disse que pediu demissão por não concordar com a censura, enquanto o ministro da Cidadania rebateu garantindo que demitiu o subordinado por falta de alinhamento), coincidiu com a 47ª edição do Festival de Gramado, que chega ao final neste sábado. Profissionais do setor audiovisual presentes na Serra criticaram a decisão do governo. Allan Deberton, diretor de Pacarrete, que integra a mostra competitiva de longas, é produtor de Transversais, uma das séries citadas por Bolsonaro:
— Está instaurada a censura. Ele (Bolsonaro) mexe com a questão da diversidade de produção, que é característica do cinema brasileiro. Somos reconhecidos internacionalmente por esse motivo.
Durante palestra no festival, o diretor da Ancine, Christian de Castro, afirmou que a suspensão se tratava de um “convite ao diálogo”, gerando indignação dos cineastas. Ao apresentar seu filme Veneza, na quinta (22), o diretor Miguel Falabella leu no palco do Palácio dos Festivais uma carta assinada por 63 entidades a favor das políticas públicas do setor. Nesta sexta (23), nova carta com teor semelhante foi divulgada e assinada por 250 produtoras independentes.
6. Incerteza
No momento, há paralisação de produções e projetos comprometidos pela falta de recursos. Existe o temor de que o setor audiovisual seja escanteado e paralisado, como ocorreu no governo Collor, nos anos 1990. Segundo a Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC/RS), muitos dos projetos em andamento no Estado estão parados porque não receberam as verbas prometidas.
— Cada produção emprega de 30 a cem profissionais. Atualmente, a maior parte dos técnicos está desempregada. O cinema é uma indústria, mas também é arte. Pode não se ter retorno financeiro, mas ele promove o fortalecimento da nossa cultura — explicou a presidente da APTC/RS, Daniela Strack.
O cineasta Rogério Rodrigues, que preside o Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio Grande do Sul (Siav), destaca:
— Essas medidas podem criar uma abertura de mercado para empresas estrangeiras.
A área emprega cerca de 335 mil pessoas e possui uma receita na casa dos R$ 25 bilhões por ano. 70% dos filmes brasileiros exibidos entre 1995 e 2016 foram contemplados com alguma forma de incentivo público.