Dois momentos do filme O Primeiro Homem são ilustrativos de como Neil Armstrong (1930–2012) transfigurava-se em um monolito diante das mais duras provações físicas e emocionais. Tanto na entrevista coletiva que antecede à decolagem da Apollo 11 rumo à Lua quanto na relutante conversa com os dois filhos pequenos, ciente da razoável possibilidade de ser a última, Armstrong exibe a frieza e o desconforto de quem não consegue expressar qualquer outro sentimento que lhe tire o foco da histórica missão que comandará nas próximas horas. A precisa combinação de expertise no ofício e equilíbrio emocional, cérebro e fibra, fizeram do astronauta de 38 anos o melhor entre os melhores pilotos que os Estados Unidos preparavam ao longo dos anos 1960 para saltar à frente na corrida espacial que disputavam, até então em desvantagem, com a União Soviética.
Armstrong imprimiu sua pegada na Lua em 20 de julho de 1969, quatro dias depois de partir do Cabo Canaveral, na Flórida, acompanhado na ponta do foguete por Edwin “Buzz” Aldrin e Michael Collins - este pilotando o módulo orbital à espera dos companheiros desbravadores. Voltaram à Terra oito dias depois, eternizados pelo sucesso na jornada de alto risco e crucial importância científica e política.
Em cartaz nos cinemas do Brasil a partir desta quinta (18), O Primeiro Homem ilumina uma figura pública que muito pouco expôs de sua vida privada. Armstrong foi um sujeito recluso e de poucas palavras fora de seu pequeno círculo de familiares e amigos. O longa-metragem dirigido por Damien Chazelle tem roteiro (de Josh Singer) baseado no livro O Primeiro Homem – A Vida de Neil Armstrong, lançado há pouco pela editora Intrínseca. Seu autor, James R. Hansen, especialista em ciência e tecnologia, conseguiu, em 2002, após longa negociação, gravar uma entrevista de mais de 50 horas com o arredio Armstrong e ter acesso a registros pessoais inéditos.
A encenação dessa intimidade é o que mais interessou a Chazelle no projeto. Os aspectos espetaculares que marcaram os avanços na corrida espacial estão presentes no filme, mas desidratados da batelada de efeitos visuais e da grandiloquência recorrentes. São palpáveis ao espectador as enormes cargas de adrenalina e coragem que moviam esses pioneiros a se lançarem ao infinito e além apertados em latas que simbolizavam a mais alta tecnologia disponível à época – mas que, a cada contagem regressiva, também estavam sujeitas a gambiarras, à sorte e aos aperfeiçoamentos decorrentes de tentativa e erro. No quesito da recriação cenográfica, transmitindo a sensação claustrofóbica de se estar a bordo de um rojão com alto risco de explodir antes da hora, O Primeiro Homem é um primor.
Até chegar ao desbundante clímax da viagem que deixou o mundo em suspense, porém, Chazelle conduz o filme com eficiência, mas num clima morno, sem alcançar plenamente o tom épico que o tema sugere — algo que se vê, por exemplo em Os Eleitos (1983), de Philip Kaufman, obra ainda referencial sobre os primórdios da exploração do espaço. Sua ambição é mais dramática do que aventuresca, mas lhe falta maior estofo para alcançar a densidade que parece buscar no interior de seu personagem.
O Primeiro Homem sublinha a provação terrena cumprida por Armstrong por quase 10 anos antes da façanha. Como o episódio que o abalou profundamente, com impacto pouco destacado em sua biografia: a morte da filha de dois anos, em 1962. A tragédia doméstica ocorreu no mesmo ano em que o ex-piloto de caça na Guerra da Coreia e engenheiro aeroespacial ingressava no programa de recrutamento da Nasa, a agência espacial americana. E parece ter selado nele uma armadura impermeável a tensões e emoções. Úteis para um astronauta, a aguda introspecção e a obstinação profissional criam barreiras afetivas no relacionamento com a mulher, Janet (vivida por Claire Foy, a rainha Elizabeth da série The Crown), filhos e colegas.
No papel de Armstrong está Ryan Gosling, parceiro de Chazelle no musical La La Land (2016). O ator já duas vezes indicado ao Oscar — e, tudo indica, com mais uma cerimônia caminho — parece sempre confortável na composição de personagens de poucas palavras e nervos de aço, com os vistos em Drive (2011) e Blade Runner 2049 (2017), entre outros filmes. O que pode ser elogiado como marca autoral ou criticado como maneirismo dramatúrgico de Gosling, porém, mostra-se, em O Primeiro Homem, bem adequado para espelhar Armstrong.
Ao pisar na Lua e imortalizar a frase “É um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”, Armstrong materializou o que antes era apenas sonhado na ficção cientifica. O tributo que lhe prestam agora no cinema é digno do feito de quem audaciosamente foi aonde nenhum homem jamais esteve.
O Primeiro Homem
De Damien Chazelle.
Drama, EUA, 2018, 141min,12 anos.
Estreia no circuito na quinta-feira (18).