Foi pelo inexplicável esquecimento de filmes como Drive que o Oscar do último domingo deixou a sensação de não premiar os melhores da temporada. Troféu de melhor direção em Cannes, a produção norte-americana dirigida pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn e protagonizada pelo astro da hora Ryan Gosling estreia nesta sexta-feira em Porto Alegre.
Drive é daqueles longas nos quais cada detalhe, seja ele de som ou imagem, das atuações ou da construção narrativa, trabalha para potencializar o impacto sentido pelo espectador diante da tela. Exercício estilístico dos mais sofisticados, revigora - com força superior à de qualquer tentativa semelhante nos últimos anos - um dos arquétipos mais recorrentes em Hollywood: o do homem de sangue nos olhos e muito pouco a dizer, às vezes travestido de justiceiro, noutras de criminoso, não raramente mocinho e bandido na mesma persona.
O protagonista não tem nome. Ganha a vida pilotando carrões que ele mesmo reforma, para bandos de assaltantes em fuga ou como dublê nas cenas de perseguição no cinema. Mistura do Taxi Driver de Scorsese com o Kowalski de Corrida Contra o Destino (leia mais abaixo), tem um ar de sujeito deslocado e sem território que só parece adequado ao espaço que habita quando está dirigindo o seu possante.
Apega-se a uma garota (a vizinha interpretada por Carey Mulligan) sem entender ao certo o que sente. Mas é por ela que se envolve numa ciranda típica dos filmes de máfia, em que um erro sucede o outro e a violência - gráfica, estilizada como a de Tarantino e Park Chan-wook - cresce assumindo papel fundamental no desenvolvimento da trama.
Drive também não deixa de ser um longa de ação - totalmente desacelerado e livre das convenções limitadoras do gênero. Tem uma dramaturgia que remete às cinematografias escandinavas contemporâneas, com sua tensão escondida sob a introspecção do personagem principal e a aparente frieza das relações que ele estabelece.
Forma e conteúdo se amalgamam: a contenção de Gosling combina com a sucessão de elipses do roteiro que Hossein Amini escreveu a partir do livro homônimo de James Sallis, prendendo o público tanto pelo que se mostra quanto, principalmente, pelo que se sugere.
O visual retrô e a trilha recheada de electrorock europeu completam o pacote, tornando Drive uma experiência imersiva, quase sensorial. Trata-se de um dos exemplos recentes mais bem acabados do triunfo inexorável da linguagem do cinema em sua capacidade de seduzir e, usando um verbo apropriado para o filme, conduzir a imaginação do espectador.
O CULT DA TEMPORADA
Como as produções assinadas por Quentin Tarantino, Drive se tornou um filme de culto seguindo uma cartilha que inclui referências da cultura pop e do cinema como um todo. Com seu estilo autoral, o diretor Nicolas Winding Refn fez do protagonista uma figura cuja presença remete a personagens mitológicos de Hollywood. Investiu numa estética retrô, fetichizou carros e objetos e usou a trilha sonora como um recurso fundamental de sedução do espectador. Tudo isso a partir de um best-seller literário que condensa elementos do suspense e do policial na forma de ficção pulp. A seguir, a equipe de ZH desvenda alguns aspectos responsáveis pelo fascínio de Drive.
> O livro:
Drive, o livro, é muito diferente de Drive, o filme - o que só deixa claro o quanto o diretor Nicolas Winding Refn foi bem-sucedido em suas escolhas para criar uma narrativa essencialmente cinematográfica.
O best-seller assinado pelo jornalista e autor de romances policiais James Sallis descreve com mais detalhes a personalidade do protagonista, narrando episódios de sua infância, aí incluídos acontecimentos que deram origem a traumas diversos e o fizeram fugir de casa, sozinho, antes de atingir a maioridade.
Além disso, os personagens secundários e seu envolvimento com o Piloto (é como a tradução brasileira chama The Driver) aparecem de maneira mais discreta, na comparação com o filme - como se o que importasse, mesmo, fosse o próprio protagonista.
Os capítulos são invariavelmente curtos, e a narrativa é fragmentada, cheia de idas e vindas no tempo, o que acentua o suspense e torna a fruição mais complexa. Lançamento da editora Leya, Drive, o livro, está disponível nas livrarias brasileiras desde janeiro.
> A mitologia:
Em vez do pistoleiro solitário cavalgando por pradarias em busca de uma causa justa para sacar a sua arma, Hollywood também consagrou como imagem icônica e fetichista o ás do volante que faz de seu carrão envenenado a extensão de seu corpo e de sua personalidade.
O desfile de bólidos possantes pilotados por Ryan Gosling em Drive é de fazer salivar os amantes da velocidade. O próprio ator reformou um Chevrolet Malibu 1973 que aparece em cena. Ele também pega no volante de, entre outros, um Chevrolet Impala, na primeira sequência do filme, e de um Ford Mustang GT 5.0 2001, este numa perseguição de arrepiar.
O enigmático piloto vivido por Gosling remete a dois exemplos clássicos deste personagem com sangue quente e coração lubrificado: o detetive vivido por Steve McQueen e seu Ford Mustang 390 GT no longa Bullitt (1968), que traz a antológica sequência da perseguição pelas ladeiras da cidade de San Francisco, e Corrida contra o Destino (1971), com o desiludido Kowalski (Barry Newman) acelerando seu Dodge Challenger R/T 440 Magnum pelas estradas dos Estados Unidos em uma jornada existencialista e suicida - em À Prova de Morte (2007), Tarantino presta tributo explícito a este filme de culto.
Também pode-se identificar no protagonista de Drive os traços justiceiros do Travis Bickle (Robert De Niro) de Taxi Driver (1976) e de Max Rockatansky (Mel Gibson), da franquia apocalíptica Mad Max (1979-1985).
Chevrolet Malibu igual ao usado no filme
> O visual:
Cores vibrantes, néons, letreiros e jogos de luzes que remetem aos anos 1980 - o visual de Drive é retrô em sua essência. O trabalho de composição visual de Refn incorpora signos facilmente reconhecíveis pelos espectadores, além de apostar na força sedutora dos objetos cênicos.
Além dos carrões pilotados pelo protagonista, há o martelo, a máscara e até o palito de dente usado por Gosling. Há, sobretudo, a sua jaqueta prateada com um escorpião dourado bordado às costas (que já é um must-have entre os fãs).
No cinema, Refn sabe, a imagem do herói - ou anti-herói - é tão importante quanto a sua própria personalidade. O "recorte e monte seu Driver" que tem circulado na internet evidencia o quanto o seu visual é marcante para o público.
Imagem Filmes/Divulgação
> A trilha:
A trilha sonora de Drive foi composta por Cliff Martinez, norte-americano que foi baterista do Red Hot Chili Peppers, estreou no cinema com Sexo, Mentiras e Videotape (1989) e firmou carreira a partir de inúmeras parcerias com o diretor Steven Soderbergh.
O álbum disponível apenas na versão importada, tem 19 músicas, sendo 14 delas compostas por Martinez especialmente para o longa. As outras são assinadas por nomes conhecidos do electrorock europeu - todas as composições têm base de sintetizadores e incorporam a estética retrô que marca parte dos trabalhos do gênero.
A Real Hero, do College (que toca durante o passeio do protagonista com a personagem de Carey Mulligan e seu filho), e Nightcall, do Kavinsky (música de abertura, com vocais da brasileira Lovefoxxx, do Cansei de Ser Sexy), são os principais destaques - remixes de ambas fazem sucesso nas pistas do velho continente.
CD da trilha sonora do filme/Reprodução
> O elenco:
Quem acompanha a carreira de Ryan Gosling desde Tolerância Zero (2001), na pele de um jovem judeu que se torna neonazista, já sabia: era questão de tempo até o ator canadense se tornar "o" cara. Hoje com 31 anos, bonitão sem ser um Brad Pitt (o que o ajudou a se destacar mais pelo talento do que pela beleza) e namorado de Eva Mendes (ele é mesmo o cara), Gosling tem se especializado, em filmes como A Garota Ideal, Namorados para Sempre e Tudo pelo Poder, em viver tipos introspectivos, solitários, com um código de ética muito próprio - quando o quebram, o sofrimento desses personagens é quase religioso. Não havia outro alguém para protagonizar Drive.
Os coadjuvantes também foram sabiamente escalados. Indicada ao Oscar por Educação, a inglesa Carey Mulligan, 26, é o que os americanos chamam de girl next door, a guria bonita que poderia ser sua vizinha de porta (no caso de Drive, literalmente). Seu jeito doce e melancólico casa bem com a personagem Irene.
A escolha para o bandido Bernie Rose foi um lance tarantinesco. Refn resgatou Albert Brooks, 64, que não fazia cinema desde 2003 (estava sendo esporadicamente visto, ou ouvido, apenas na TV, em Weeds e Simpsons), e o colocou em um registro nada habitual - o ator é mais associado a papéis cômicos.
Christina Hendricks é o chamariz para um público mais sofisticado, que a vê no mais charmoso seriado dos últimos tempos, Mad Men (faz a secretária Joan Harris). Epíteto da ruiva de perder a cabeça (é uma Jessica Rabbit de verdade, e sem restrições alimentares), a atriz de 36 anos vive, em Drive, Blanche, femme fatale que entra na rota do protagonista.
Carey Mulligan, a vizinha/Imagem Filmes, Divulgação