Por Marco Antonio Filho
Curador de “Desenho: Fotografias de Luiz Carlos Felizardo”
Antes da fotografia, houve o desenho. Essa constatação, um tanto óbvia se pensada à luz da produção de imagens, diz respeito à trajetória pessoal do fotógrafo Luiz Carlos Felizardo. Isso porque, antes de descobrir o potencial expressivo da fotografia enquanto linguagem, Felizardo teve sua primeira referência estética marcante no trabalho do desenhista francês Gustave Doré (1832-1883) (leia depoimento do artista abaixo).
O encontro com a obra de Doré se deu ainda na infância, através de livros como A Divina Comédia e Don Quixote de la Mancha. O fascínio pelas ilustrações de forte expressividade dramática, construídas por traços finos e meticulosamente arranjados, parece ter sido a matriz que estruturaria a base de sua produção fotográfica, iniciada no final da década de 1960.
Tal influência é facilmente identificável nas fotografias em preto e branco que formam o cerne da empreitada artística de Felizardo. Realizadas com o máximo rigor e excelência técnica, essas imagens se destacam tanto pela delicadeza da abordagem quanto pela riqueza de tons de cinza. Enquanto Doré traçava linha a linha uma gama tonal de gradação infinita, Felizardo realiza trabalho semelhante através de um complexo processo físico-químico, que vai da captura em negativo até a realização do print em laboratório.
Outra característica marcante de sua produção fotográfica parece também ter origem nessa referência inaugural: a preferência pelo uso de grandes profundidades de campo – ou seja, pelo foco total, do primeiro ao último plano da imagem. Escolha pouco comum entre fotógrafos, que costumam utilizar o desfoque para criar nuances espaciais, o programa estético de Felizardo joga com a sobreposição de planos, criando fotografias que se apresentam menos como “recortes da realidade” e mais como aquilo que são por essência: imagens bidimensionais.
Seja em tons de cinza ou em sua produção em cores – poucas vezes vista, e agora apresentada pela primeira vez em um contexto expositivo –, do primeiro ao último plano de suas fotografias tudo ganha igual relevância, como se para ele não houvesse hierarquia simbólica entre os elementos que preenchem o visor da câmera: ao entrar em seu campo de visão, tudo vira um componente gráfico da maior importância.
Os experimentos fotográficos de sua fase inicial, no final dos anos 1960 e início dos 1970, já parecem anunciar o interesse claro de Felizardo pela fotografia enquanto imagem que supera a relação com seu referente. Mesmo utilizando procedimentos que não voltariam a aparecer subsequentemente – como o ato de fotografar um mesmo slide diferentes vezes, cada vez utilizando um filme fotográfico diferente –, o grafismo elegante de sua produção madura pode ser vislumbrado nessas imagens quase-abstratas. Vinte anos depois, o interesse pela abstração, prenunciado nessas imagens de um curioso colorido néon, irá culminar em uma série de fotografias realizadas sem o uso de câmera, mas com negativos compostos a partir da aplicação de tinta nanquim sobre folhas de papel celofane.
Felizardo, que apesar da paixão pela obra de Doré, assim como de outros ilustradores, nunca se sentiu apto a se aventurar pelo desenho – parece ter encontrado na fotografia seu modo de jogar com formas, volumes, linhas, texturas, cores, luzes e sombras. Pode não ter a mão, mas tem o olho de um desenhista.
Em casa
Por Luiz Carlos Felizardo
Fotógrafo
Nasci numa sexta-feira, no dia 5 de julho de 1949, no Hospital Beneficência Portuguesa. Morava, então, na Rua Riachuelo, a uns 200 metros daqui (Pinacoteca Rubem Berta), em linha reta e paralela à calçada em pedra portuguesa da Praça da Matriz. Brinquei muito nos leões do monumento a Júlio de Castilhos, e o centro de Porto Alegre me influenciou a ponto de realizar, em 1981, uma exposição inteiramente dedicada a sua paisagem.
Minhas lembranças da infância são muito ricas, sempre junto a meu pai e minha mãe, normalmente às voltas com livros. Vêm desse período minhas primeiras relações com a fotografia, através da revista Time, que meu pai assinava, por meio da qual conheci os ensaios fotográficos de W. Eugene Smith (1918-1978). Desse ambiente familiar também recebi a saudável influência de desenhistas como Gustave Doré e Oswaldo Storni (1909-1972) – este último ilustrador das obras de Francisco Marins (1922-2016), autor do inesquecível livro Bugre do Chapéu de Anta.
Através desses ilustradores desenvolvi o apreço pelas texturas e a grande variedade de meios-tons. Experimentei também a consciência dos planos focais, e acabei por descobrir que a fotografia é capaz de nos brindar com foco do primeiro plano ao infinito, desde que se use uma câmera de grande formato (com chapas de filmes fotográficos de 4x5 ou 8x10 polegadas) – o chamado “efeito scheinpflug”.
Utilizei uma grande formato a partir de 1971, tanto por conta da possibilidade de trabalhar com foco em todos os planos quanto de emular a delicadeza com que os traços da gravura e do bico de pena evocam os meios tons.
Por fim, acho importante registrar que expor na Pinacoteca Ruben Berta tem um valor especial para mim: a destinação e restauração desse belo prédio foi possível graças ao trabalho incansável da arquiteta e grande amiga Briane Bicca (1946-2018), que coordenou o Projeto Monumenta em Porto Alegre. Como forma de reconhecimento pela sua dedicação, o auditório desta instituição leva seu nome.
Por tudo isso, posso dizer que aqui me sinto em casa.
Desenho: Fotografias de Luiz Carlos Felizardo
Exposição que destaca o homenageado do 16º Açorianos de Artes Visuais, um dos mais celebrados fotógrafos brasileiros. Na Pinacoteca Rubem Berta (Rua Duque de Caxias, 973), em Porto Alegre. Em cartaz até 12 de abril, com visitação de segunda à sexta, das 9h às 12h e das 13h30min às 17h.
Outras fotografias de Luiz Carlos Felizardo podem ser vistas nas paredes da recém-inaugurada livraria Clareira (Rua Henrique Dias, 111, bairro Bom Fim). São 12 imagens inéditas da série Portugal da Pedra.