Por Marco Antonio Filho e Tiago Coelho
Artistas, curadores e sócios-diretores da Fluxo – Escola de Fotografia
Cidades são estruturas que buscam racionalizar o espaço, tornando mais eficientes os sistemas de poder e controle que regem as sociedades.
Apesar de a Revolução Industrial ser considerada o marco inicial do processo que hoje leva 55% da população mundial a viver em áreas urbanas, segundo a ONU-Habitat, as cidades em si não são uma invenção da modernidade. Diversos povos pré-modernos, baseados em distintas geografias, ergueram urbes complexas e de grande densidade populacional, provavelmente não tão diferentes das atuais metrópoles. E, em todas essas experiências – as da Antiguidade, assim como as de hoje –, a vida contida nas cidades buscou incessantemente a reconfiguração da lógica urbana, em uma tentativa perseverante de encontrar novas formas de habitar tais espaços.
Os trabalhos reunidos na mostra Viver e Morrer na Cidade, em cartaz na galeria do Goethe-Institut Porto Alegre, problematizam a experiência nas metrópoles a partir de distintas abordagens, por vezes conduzindo a um caminho evidentemente político; noutras, afetivo – e, talvez, na maioria das vezes, entrecruzando essas duas vias. Independentemente do viés, o que perpassa todas as obras é a postura de quem vive a cidade de forma crítica, buscando brechas em suas estruturas para habitar e pensar a cidade pelo que ela é e pelo que ela pode vir a ser.
Em um conjunto de quatro fotografias, Hudson Rodrigues apresenta o paredão asséptico de um grande empreendimento imobiliário por onde pedestres caminham em seu trânsito diário. Nessas imagens, não há o movimento rigorosamente delineado dos chamados “fotógrafos de rua”, assim como na sequência de fotografias de Caroline Lütckmeier. De forma aparentemente descompromissada, essa artista registra um breve encontro cotidiano entre um casal idoso e uma dupla de senhoras. Há a sincronia dos gestos, mas também das estampas floridas e das bolsas a tiracolo. É apenas um encontro banal e fugaz, como tantos que ocorrem nas ruas das grandes cidades. Com suas dinâmicas sobrepostas, as duas breves sequências nos permitem lembrar que, para o transeunte das metrópoles, o espaço nunca é estático, mas sempre fluido, fugidio e provisório.
A exposição reúne um recorte inédito do arquivo fotográfico do Boca de Rua, jornal que é editado desde 2002 em Porto Alegre e cujo conteúdo é produzido inteiramente por pessoas com trajetória ou em situação de rua. A frase que dá título à mostra é retirada diretamente de uma matéria publicada pelo Boca, que com sagacidade e resiliência vem contando histórias que se apresentam a olhos vistos, mas que muitos – incluindo o poder público – ignoram deliberadamente.
Lil Crlxs e Henrique Bittencourt vivenciam um contexto cultural em que a rua se apresenta como o lugar primordial. Na série Ruído Branco, Crlxs traduz em fotografias o ambiente sonoro que a vida no tradicional bairro boêmio Cidade Baixa proporciona para ele, que convive com um zumbido que escuta constantemente, decorrente de uma infecção que teve aos 18 anos. Já Bittencourt encontra nas camisetas o suporte ideal para fazer suas fotografias circularem, devolvendo-as para o ambiente onde originalmente foram produzidas, criando assim um circuito próprio e dinâmico para expor seu trabalho.
Em Embu-Guaçu, região da Grande São Paulo, casas baixas, de tijolos à vista, convivem ao lado de uma densa mata, sugerindo a promessa de um convívio harmonioso entre “natureza” e “civilização”. Nesse cenário, a artista Mariane Lima se posta de frente para a câmera, colocando-se não como espectadora distante, mas como parte integrante da paisagem – com a pele de seus pés descalços em contato direto com o cimento da laje da casa construída pelas mãos de seu pai.
De modo espontâneo, Cicero Costa fotografou nas ruas o que seus olhos encontravam ao nível do chão: defeitos e marcas do tempo nos pisos; os rastros dos transeuntes; os objetos esquecidos ou jogados fora. Em conjunto, essas imagens revelam o andar cabisbaixo e introspectivo de quem leva consigo o peso da existência marcada pela escassez de recursos e, consequentemente, de perspectivas.
A fotografia de Ricardo Neves, de um complexo de edifícios que se erguem no entorno de uma pequena construção histórica no centro de Porto Alegre, sintetiza a voracidade da especulação imobiliária que sobrepõe o bem-estar público aos interesses de construtoras privadas. Essa imagem parece ecoar a forma como Claude Lévi-Strauss definiu São Paulo há quase um século, e que dá conta da grande maioria das atuais metrópoles brasileiras: “(…) Cidade que cresce permanentemente em altura pela acumulação de seus próprios escombros que sustentam as construções novas (…)”.
Viver e Morrer na Cidade Grande
Trabalhos de Caroline Lütckmeier, Cicero Costa, Henrique Bittencourt, Hudson Rodrigues, Lil Crlxs, Mariane Lima, Ricardo Neves e do jornal Boca de Rua. Na Galeria do Goethe-Institut Porto Alegre (Rua 24 de Outubro, 112), de segunda a sexta-feira, das 9h às 19h, e sábados, das 9h às 13h. Até 29 fevereiro de 2024. Entrada gratuita.