Por Eduardo Veras
Crítico e historiador da arte, professor do Instituto de Artes da UFRGS
Entre os diferentes modos de existência do desenho, talvez nenhum calhe de ser mais sedutor do que o de observação: aquele que se faz no momento mesmo em que se examina algo. Embora conjugue olho e mão, papel e pensamento, parece que o desenho de observação privilegia o entendimento sobre o que se vê. Desenhar observando é um método sabidamente eficaz de compreensão do mundo, seja de um objeto, uma pessoa, uma paisagem, um fenômeno. Observar desenhando estimula a construção do saber. A observação elege memórias, prolonga afetos, fixa o que já ia se perdendo.
O desenho de observação também corresponde a uma espécie de rendição diante daquilo que nos encanta, não necessariamente uma grande cena, mas a sorte da maravilha que consegue irromper em meio ao mais banal: o gato que se espreguiça, os bem vizinhos desfilando distraídos na janela, a turma da natação percorrendo a piscina, os inocentes em férias, estendidos na areia quente, passando um óleo suave nas costas. São formas que aparentemente se oferecem e vêm nos pedir para virar desenho.
Daí, parte significativa da exposição que Patrícia Bohrer apresenta no V744 Atelier, em Porto Alegre. A mostra reúne esse pouco que é o muito da observação gráfica do dia a dia: anotações rápidas, cadernos de inacabados, vídeos que tratam de animar esses registros cotidianos. A artista também retoma o interesse em certa pintura e exibe uma série em dimensões mais amplas. As aguadas em tinta acrílica sobre papel funcionam, de alguma forma, como desdobramentos do desenho de observação. Saboreando a transparência das cores muito diluídas e a maleabilidade da linha, Patrícia sobrepõe imagens anotadas em diferentes circunstâncias. Fragmentos de vida – registros de viagem, cenas de filmes, vasos de plantas, o gato, os vizinhos, os colegas de natação – se encontram de modo inesperado, quase aleatório. Em clima onírico, as composições levam um polvo para a piscina, araras para dentro do quarto, um varal de roupas para a floresta. Os arranjos se fazem sem hierarquia e tampouco parecem almejar o absurdo. Interessa, quem sabe, mais do que uma utópica harmonia ou uma tensão insolúvel, uma possibilidade (ainda que tonta, para certos observadores) de interação.
Ocorre que o desenho de observação, mesmo nesses curiosos encontros, oferece sempre a chance do deslocamento. Com alguma sorte, o artista estabelece uma intimidade com o que observa, ele aprende e apreende (menos sobre si e mais sobre o outro).
Resume a própria Patrícia:
– É um exercício da atenção. É feito quando a gente ouve outra pessoa, sem deixar que uma voz interna atrapalhe. Importa o que o outro fala, e não o que se espera ouvir. Trata-se de uma ação sem julgamentos. Com as imagens, acontece a mesma coisa. Preciso me libertar daquilo que eu já sei sobre a forma e o domínio do desenho. É um movimento contrário a nossas certezas e também contrário à dispersão.
Daí o título da mostra: Lugares que Ainda Não Visitei. A expectativa e o desejo que vêm aí manifestos espelham de modo indireto a militância social e ambientalista da artista: sua compreensão sobre a subjetividade do tempo, as eternas metamorfoses da vida e seus ciclos, a interdependência incontornável entre humanos e não humanos, habitantes de um mesmo planeta. O gosto de Patrícia pela meditação também alimenta, ela imagina, o sabor de seus desenhos.
– A meditação – ela pondera – não é só um espaço vazio de plenitude e paz, ela é uma investigação da realidade, uma observação da própria impermanência das coisas. É um lugar onde pensamentos, lembranças, emoções, sensações físicas vêm e vão, e nos dão essa experiência de um tempo subjetivo, não linear, estar aqui, dentro e fora ao mesmo tempo.
O comentário – talvez mais lógico do que metafísico – pode ser compreendido (e aceito) como um convite para se observar o desenho de observação.
De minha parte, esse gosto pelo mais banal da vida ordinária e seus eventuais e insólitos rearranjos têm algo de celebração – da vida e dos próprios desenhos. Há muitos anos Patrícia Bohrer, nascida em Porto Alegre, em 1965, não trazia a público o seu trabalho. É um contentamento descobrir (ou redescobrir) que ela desenhava, que desenhava tanto e com olhos tão atentos.
Lugares que Ainda Não Visitei
Obras de Patrícia Bohrer. Abertura neste sábado (11/11), às 17h. Visitação da partir de quarta-feira (15/11), até 9/2/2024, de quartas a sextas, das 14h às 17h (com recesso entre 16/12 e 16/1). Para visitar em outros dias e horários, agendar pelo DM do @V744atelier, no Instagram. O V744Atelier fica na Rua Visconde do Rio Branco, 744. Entrada franca.