Por Francisco Dalcol
Diretor-curador do Margs
Uma das características das práticas artísticas que se seguiram às vanguardas históricas, notadamente a partir dos anos 1960, foi que, ao extrapolar convenções da pintura, escultura, desenho e gravura, adentrou-se um novo território de investigação dos meios e da linguagem, mais livre porém desafiador, porque indaga sobre as próprias condições de possibilidade da arte. Isso é acompanhado de um radical deslocamento – do que um objeto artístico representaria ou significaria para a ampla rede de sentidos e experiências que inicia e é capaz de produzir.
A partir daí, intensifica-se a complexidade própria à arte, uma vez que a pergunta sobre o que uma obra “diz” ou “significa” tem sua reconfortante resposta substituída por uma inquirição ainda mais profunda e até desconcertante: “quando” e “como” há arte?
O que muda também radicalmente o próprio estatuto do espectador, do qual passa a ser exigida uma disposição mais ativa e mesmo reflexiva, no nível do pensamento e de uma (auto)consciência crítica.
A produção de Hélio Fervenza se inscreve na descendência dessa chave de compreensão sobre a passagem operada pelas práticas artísticas firmadas nas últimas décadas. Ao longo de 40 anos de atuação como artista, pesquisador e professor, Fervenza vem desenvolvendo uma obra de densidade conceitual reconhecida e consolidada pela solidez e coerência.
Um dos importantes nomes da chamada geração 80 das artes visuais no Rio Grande do Sul, ele desde então expõe com regularidade no Brasil e no Exterior. Em 2012, foi destacado pela 30ª Bienal de São Paulo ao ganhar uma sala individual de retrospectiva e, no ano seguinte, escolhido para a representação do Brasil na 55ª Bienal de Veneza.
Embora tenha realizado mostras em Porto Alegre, o artista ainda não havia apresentado uma exposição mais histórica e abrangente de sua trajetória como a que o Margs agora organiza, marcando também sua primeira individual na instituição. Nesse sentido, Hélio Fervenza – Conjunto Vazio apresenta um panorama retrospectivo de sua produção, com a reunião de trabalhos que são revisitados contemplando desde o início dos anos 1990 até o presente, incluindo inéditos.
A questão central de sua obra são as relações entre visualidade e linguagem, exploradas em grande parte pela polissemia que resulta de jogos de oposição como visibilidade e invisibilidade, cheio e vazio, dentro e fora, o manifesto e o oculto.
Inicialmente em desenho e gravura, depois com operações diversificadas que envolvem objetos e materiais cotidianos, composições gráficas, impressos e fotografias, suas obras investem em uma visualidade despojada e formalmente depurada, ressoando descendência de preceitos do construtivismo, do minimalismo e dos conceitualismos.
No uso da fotografia, por exemplo, a simples função de registrar e documentar algo ou uma ação acaba sendo subvertida por um embaralhamento dos códigos visuais e perceptivos. Já ao convocar elementos gráficos da linguagem escrita, sobretudo sinais de pontuação ampliados, transforma-os em signos visuais que redimensionam o ambiente, gerando espaços que se prolongam dentro de espaços, como um convite a serem ocupados pelo pensamento. E, embora reste evidente que suas obras lidam com algo do banal, são o desconhecido e o incompreensível que se impõem, envolvendo-as em um sentido de mistério e enigma.
Ao modo como são apresentados, seus trabalhos exploram o espaço e a espacialidade estruturando-se pela justaposição das peças, como se fossem partituras de arranjos orquestrados por ritmos, intervalos e silêncios. Do que resulta a manifestação de uma retórica visual de forte componente gráfico.
E sempre desafiando a unicidade e a individuação da obra pela articulação da sintaxe espacial de seus elementos, com procedimentos de ordem expográfica segundo um pensamento de montagem, em resposta às especificidades do espaço e da circunstância de apresentação.
Ao modo com que encaminha a pesquisa poética em artes visuais, Fervenza tem sua produção também fortemente marcada pela atuação universitária. Nascido em Santana do Livramento e com formação em artes realizada na França, onde fez graduação, mestrado e doutorado, é professor do Instituto de Artes da UFRGS desde a década de 1990, atuando na docência e na pesquisa.
Como um artista com trajetória na universidade, conjuga prática artística e produção intelectual e teórica com métodos e rigor de pesquisa. Seu profundo interesse pelo estudo e conhecimento faz dele um pensador das artes visuais, cujas reflexões analíticas inscrevem-se não só na gênese de sua obra, mas como reflexão mais ampla e profunda sobre a produção artística e o campo das teorias e da história da arte.
Hélio Fervenza – Conjunto Vazio
Trabalhos que perpassam a produção de Hélio Fervenza. No Museu de Arte do Rio Grande do Sul – Margs (Praça da Alfândega, s/n°, em Porto Alegre), até 12 de novembro. Visitação de terça-feira a domingo, das 10h às 19h (último acesso 18h), com entrada gratuita. Visitas mediadas para grupos e escolas podem ser agendadas pelo e-mail educativo@margs.rs.gov.br.