Por Zalinda Cartaxo
Artista visual, bidoutora em Artes (USP & UFRJ) e autora de “Pintura em Distensão” (2018)
O que leva um pintor (sim, contrariando a tese antiespecificidade de Joseph Kosuth) a retomar estruturas picturais históricas referencialmente no seu trabalho? Não terá sido sempre uma questão na pintura? Retomar para desmembrar em novas estruturas acordadas ao tempo presente? Considerando que a pintura pensa (como defende Didi-Huberman) e que a mesma encontra-se alicerçada por uma rede temporal que, incessantemente, reverbera no tempo presente alimentando, assim, uma cadeia pensante, podemos vislumbrar o fato de que toda e qualquer pintura (e obras de arte no geral) não é, em si, conclusiva. Configura-se como um aberto e necessita de novas leituras e enfrentamentos. É, portanto, o que temos no excelente conjunto de pinturas que Clóvis Martins Costa apresenta em exposição na galeria Ocre até o próximo dia 30.
Se considerarmos o termo reverberação no âmbito científico, como fenômeno ondulatório relacionado à reflexão do som, veremos estar associado ao intervalo de tempo necessário para a percepção do som refletido por um obstáculo qualquer. Metaforicamente, não seria o que ocorre no âmbito da pintura? A necessidade de um tempo para a sua apreensão? O que justificaria a constante retomada de modelos picturais históricos ainda inconclusos na sua estrutura pulsante e pensante.
As pinturas de Clóvis revelam suas inquietações no que se refere ao status quo da pintura, em que confrontos improváveis configuram-se como verdadeiras equações a serem resolvidas pelo artista.
O olhar estrutural do artista revela-se pela geometria intrínseca, que ora é claramente visível, ao utilizar os repertórios da mesma (linhas, planos etc.), ora é absolutamente sutil (ao delimitar e organizar geometricamente campos de manchas pictóricas). Sua geometria ora está vinculada à revisão de modelos históricos de pinturas, ora vem da própria realidade, como, por exemplo, na pintura Portuária, em que reorganiza a realidade pictoricamente. A relação com o real operada pelo artista se faz evidente, também, na escala adotada (nesta última pintura, 300 cm x 150 cm) promovendo, assim, uma espécie de potencialização da realidade-pintura.
Em Pontal da Barra, Clóvis resgata a pintura de Richard Diebenkorn, Berkeley #32, de 1955, tomando-a como agente problematizador. Como pintar hoje uma pintura de outra década e de outro autor? A apropriação, aqui, é notório indício de reverberação pictural em que, para um pintor, é urgente tal enfrentamento e colaboração crítico-reflexiva na sua existência (a obra original). O resultado, ou seja, a pintura Pontal da Barra de Clóvis, acaba por constituir-se potencialmente nova e autoral, única, em que a sua notória filiação é recurso para conciliar temporalidades indistintamente.
Importante destacar na sua pintura Brenha a necessária referência à Paul Cèzanne (Álamos, de 1882). A escolha dessa pintura revela o quão necessário se faz para Clóvis o fator dificuldade. Essa pintura de Cèzanne é cromática e espacialmente densa. E é a partir dessa dificuldade que Clóvis oferece uma resposta pictural extremamente diferenciada. O artista reorganiza a estrutura do espaço, das cores, das formas, em que podemos observar, assim, o atravessamento da obra de ambos. Relevante, também, o fato de Clóvis usar tinta acrílica nas suas pinturas, o que, mais uma vez, confirma a prevalência da sua vontade estrutural sobre a imagética original. Ao adotar a pintura Vista de Haarlem com Campos Claros, de Jacop Von Ruisdael, de cerca de 1670-1675, como “equação” para a sua pintura em acrílica, é notório o quão geométrico é o seu pensamento-pintura. Clóvis apreende campos pictóricos cromáticos numa espécie de síntese pictural, em que apenas o essencial deverá permanecer. Trata-se de um enfretamento crítico-racional, contudo, fundamentalmente, estético. Quando também utiliza a pintura de Vasily Kadinsky, Landscape near Murnau With Locomotive, de 1909, complexifica ainda mais tal operação, uma vez que Kandinsky também operava sua pintura pela síntese. Essa pintura de Clóvis, Trecho de Paisagem com Branco sobre Fundo Geométrico Vermelho, personifica algo presente nas demais: uma espécie de mise-en-abyme potencialmente infinito.
Finalmente, a exposição Reverberações Picturais, de Clóvis Martins Costa, comprova com excelência como pinturas podem ser inteligentes, atemporais e agregadoras.
Reverberações Picturais
De Clóvis Martins Costa. Até o dia 30/9, na Ocre Galeria (Rua Demétrio Ribeiro, 535, em Porto Alegre). Visitação de segunda a sexta, das 10h às 18h, e sábado, das 10h às 13h30min. Na próxima quinta-feira, às 18h, haverá uma conversa com o artista, com mediação de Marilice Corona. Entrada franca.