Por Eduardo Nasi
Jornalista
O artista e professor Jailton Moreira está com uma nova exposição em Porto Alegre: Curso, em cartaz no V744 Atelier, reúne obras recentes em formatos que vão de vídeos a um livro de poemas sobre arte. Uma ideia incontornável une todos os trabalhos: o escrutínio impiedoso de toda e qualquer imagem.
Não é de hoje que Jailton se declara um iconoclasta. Só que sua exposição individual anterior foi em maio de 2014 – antes do 7x1, do golpe, da pandemia, da ascensão global da extrema direita e também do ChatGPT, do deepfake e do MidJourney. Além disso, esses anos foram marcados pela manipulação das imagens pelos projetos de poder, usando não só sistemas sofisticados de inteligência artificial, mas também malabarismos absolutamente toscos para contar mentiras deslavadas em buscas do tal “controle da narrativa”. A opinião pública virou um campo de batalha semiótico em uma guerra que está longe de chegar ao fim.
A obra de Jailton não passa incólume por essa década tão longa que mais parece uma era geológica. O resultado é um pH ainda mais ácido em seus trabalhos, e é isso que o espectador vai encontrar em Curso: imagens que são colocadas em xeque pelo artista, e das quais o espectador precisa duvidar o tempo todo.
Uma série de trabalhos fotográficos torna os signos absolutamente pantanosos. Esquema para uma Palestra nunca Realizada: Instalações para Primatas mostra slides com fotos que evocam um estranho diorama. As imagens foram feitas nas jaulas dos macacos do Zoológico de Berlim. Família Adams são fotos clicadas em uma maquete feita de bronze do Parque de Yosemite, nos Estados Unidos. Nada aqui é o que parece. Mas atenção: o que interessa a Jailton não é produzir ilusão, e sim uma imagem capaz de causar o estranhamento do espectador e, com isso, a desconfiança e, por fim, um estado de alerta permanente.
Esse clima se intensifica quando se chega aos vídeos da exposição. Todos são feitos a partir de clipes capturados de plataformas digitais como o YouTube, em um trabalho que mistura arqueologia eletrônica com uma edição-colagem tão simples quanto precisa. Amor Eterno Amor, por exemplo, é uma pedrada na crítica de arte, em que a tautologia de clichês usados para tentar atribuir algum sentido à obra se revela justamente um discurso vazio. Os Jailtons é uma espécie de anti-autorretrato. O vídeo reúne dezenas de xarás do artista, criando um jogo de espelhos quebrados que tentam criar um reflexo a partir de quem Jailton não é.
Deus Acima de Tudo é o trabalho em que o enfrentamento contra a extrema direita se radicaliza em pura iconoclastia. A partir de filmagens de montagens da Paixão de Cristo, das mais amadoras às mais grandiosas, o vídeo faz uma radiografia de uma certa fé cristã que parece namorar programas policialescos do fim de tarde da TV.
A única obra da mostra que se contrapõe à iconoclastia é ilustrações, um livro de poemas que está sendo lançado paralelamente à exposição pela editora Aboio. Em versos escritos ao longo de 30 anos, Jailton faz críticas de arte com muito lirismo. É justamente na dança de sentidos da poesia que o artista-poeta consegue oferecer a mão e ajudar o espectador a ver imagens reconfortantes, capazes de resistir a qualquer horror, do Taj Mahal às esculturas do inglês Anthony Caro.
Ao deparar com os problemas de escrever sobre Curso, lembrei-me (não por acaso) de Aula, um livrinho que publica a aula inaugural de Roland Barthes na disciplina de Semiologia Literária no Colégio de França, em 1977. Barthes relembra que a semiologia vem da análise dos discursos de poder e que, no fim das contas, tudo ali é a política – e ignorar a política é abrir o flanco para o adversário.
O semioticista fala que uma das forças da literatura (e daqui para frente cito-o, na tradução de Leyla Perrone-Moisés), “sua força propriamente semiótica, consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-lo em uma maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram”.
Traçando um paralelo, a radicalidade da arte de Jailton tem a ver justamente com arremessar a linguagem ladeira abaixo, sem breques nem travas. As obras só se sustentam porque o artista confia na capacidade do público de jogar com os signos, ou seja, de observá-los atentamente, de desconfiar, de reordená-los, de sustentar o estranhamento, enfim, de descer a ladeira com um carrinho de rolimã de imagens e sentidos. Não é pouca coisa para um notório iconoclasta. Diante de tudo o que se viu em anos recentes, Curso não deixa de ser uma profissão de fé.
Curso
Obras de Jailton Moreira. Em cartaz no V744Atelier (Rua Visconde do Rio Branco, 744) até 27 de outubro. Visitação de quartas a sextas-feiras, das 14h às 17h. Para outros dias e horários, é necessário agendamento por mensagem direta no perfil do espaço no Instagram: @V744atelier. Entrada franca.