Por Nora Prado*
Ainda chocada com a súbita morte do pintor Fernando Baril, me dou conta de que a notícia do seu falecimento ultrapassou as fronteiras do Estado do Rio Grande do Sul, mas, em Porto Alegre, a sua passagem foi acanhadamente noticiada pelos meios de comunicação locais. Prefeito e governador do Estado sequer emitiram nota de pesar, nem decretaram luto oficial por três dias, como se costuma fazer em homenagem a personalidades que alcançam algum reconhecimento público e notório, levando o nome da sua terra natal para o mundo, como é o caso deste artista excepcional. No jornal diário de maior circulação do Estado, a notícia estava apenas na página do obituário e não estampou a capa, como era de se esperar.
Fernando Baril foi um dos maiores pintores brasileiros contemporâneos, com uma vasta e rica produção em quantidade e extrema qualidade. Reconhecido pelos seus pares, crítica especializada e marchands do Brasil inteiro, levava o seu trabalho a sério com o rigor de sacerdote e a persistência de operário. Se declarava herdeiro das artes moderna, surrealista, realista e impressionista enquanto os seus amigos o consideravam pós-moderno. Sua técnica, apuradíssima, aliada a um senso de composição e utilização criteriosa da cor, elevava os temas cotidianos ao nível do sublime absurdo. Crítico eloquente do capitalismo selvagem e da sociedade de consumo, mostrava as aberrações produzidas pela mesma, adoecida em seus sintomas de narcisismo, egoísmo, solidão e incomunicabilidade.
Expressou de modo provocativo a sua inconformidade e perplexidade com o mundo digital e as transformações sociais e políticas do seu tempo. Sua pintura, lúdica e exuberante, brinca com duplicações, inversões, justaposições e substituições, flertando com o nonsense, o sarcástico e o grotesco. Há também lirismo e muito humor, num universo mágico e caótico repleto de referências culturais de um mundo conectado em rede. Narrativas construídas por sua visão extremamente lúcida da realidade e pelo talento cultivado, diariamente, em seu ateliê no centro da cidade de Porto Alegre. Ali, produzia, compulsivamente e com prazer, uma média de 30 telas mensais. Foi professor, formou dezenas de estudantes de artes visuais e vivia exclusivamente da sua arte.
Fernando Baril, ao lado dos pintores Maria Lídia Magliani, Iberê Camargo e Glauco Rodrigues, é expoente do melhor da pintura produzida no Rio Grande do Sul para o Brasil e o mundo. Maria Lídia, recém agora, está tendo o merecido reconhecimento público, como atesta a recente exposição na Fundação Iberê Camargo de 2022. Fernando Baril teve uma bela retrospectiva no Margs por ocasião dos seus 70 anos, há cinco anos. Sua gigantesca obra merece a atenção, o cuidado e a manutenção necessários para que não se deteriore e, tampouco, o seu nome caia no esquecimento.
Vasco Prado
Digo isso por experiência própria de quem vê, com tristeza, o nome do meu pai, o escultor e desenhista Vasco Prado, caindo no esquecimento. Atualmente, nenhum jovem de escola pública tem noção de quem seja ele e pouquíssimos estudantes de escolas particulares, talvez, saibam que ele é o autor do painel da Assembleia Legislativa do Estado ou da escultura Tiradentes, no mesmo prédio. Sua obra está cada vez mais restrita à classe artística e a estudantes de artes. O último presente em vida deixado por Vasco foi uma escultura de nome Vitória, para ser erigida na orla do Guaíba.
A proposta feita e aceita pela prefeitura da época, com projeto de fundição da escultura e construção de uma base para ela com projeto urbanístico e paisagístico do arquiteto Rogério Malinsky, aprovado pela prefeitura, indicava, inclusive, um terreno previsto para concessão desta obra pública. Para meu desgosto e da minha família, isso nunca saiu do papel, e a escultura segue ainda num depósito em São Paulo à espera da aguardada fundição.
Sim, esculturas e monumentos públicos custam dinheiro para a sua execução. Mas parece que nossos políticos estão mais interessados em imitar propostas de letreiros estandardizados como "I Love Porto Alegre" no Morro da Polícia, um estacionamento sobre os escombros do Parque da Harmonia ou uma roda gigante milionária. Ninguém nestes complôs político-empresariais está, verdadeiramente, interessado em proporcionar um bem cultural consistente e belo para a nossa cidade. Qual prédio público ou instituição privada tem interesse em ter mural, tapeçaria, escultura ou obras de arte de nossos artistas visuais? Raríssimos, infelizmente.
Fernando Baril, caso tivesse nascido e vivido na Argentina, na França ou nos Estados Unidos, certamente, além do pesar nacional repercutindo nas principais matérias da mídia, teria muitas das suas belas obras decorando prédios e instituições públicas e privadas, como acontece em países onde se valoriza a arte e a cultura. Aqui será um sacrifício imenso preservar o seu acervo precioso, uma vez que, como meu pai, não possui fundação própria para isso nem o Estado do RS tem interesse em se comprometer com tarefa de tal ordem. Custa dinheiro, investimento e dedicação permanente. Mas, caso isso fosse prioridade, teríamos mais museus e instituições, próprias, para a preservação e a difusão desse patrimônio material e simbólico. Incrédula, constato que o nosso provincianismo segue firme orientando os rumos da carroça gaúcha ladeira abaixo e que nossos medíocres dirigentes seguirão a cartilha neoliberal perpetuando o colonialismo cultural que importa o pior da cultura de massas, especialmente a norte-americana.
Cabe aos historiadores, críticos de arte, jornalistas, artistas visuais e à comunidade em geral se unir em favor de políticas públicas que invistam na criação de espaços para abrigar os acervos dos nossos artistas visuais. Isso parece óbvio, pois a arte sintetiza a cultura de um povo, mas aqui será necessário lembrar sempre o óbvio, se quisermos um mínimo de lastro cultural significativo.
Que Fernando Baril, assim como Maria Lídia Magliani, Iberê Camargo, Glauco Rodrigues, Vasco Prado e uma constelação de artistas desta grandeza, possa ser visibilizado na cidade. Celebrado pelas praças, parques, escolas, hospitais e tantos espaços públicos e privados quanto a nossa imaginação alcançar. Um país que cultiva os seus artistas é estruturalmente mais bonito, forte e sadio. Um Estado que reconhece o seu papel de guardião e difusor da obra dos seus artistas se compromete com a memória cultural de seu povo, promovendo a socialização da arte. Um povo que se espelha na sua riqueza cultural é potencialmente mais sensível, crítico e desenvolvido.
Não tenho dúvida de que a monumental obra de Fernando Baril ainda será plena e devidamente celebrada na mesma medida que um Candido Portinari, um Di Cavalcanti ou uma Tarsila do Amaral, pois até nisso somos provincianos demais para reconhecer o talento de quem se inscreve fora do eixo Rio-São Paulo. Fernando Baril, para nossa sorte, aparentemente simples e despretensioso no trato pessoal, sempre foi sofisticado e universal. Seguirá vivo através da sua pintura para sempre!
* Atriz e poeta