A arte desafiadora de Maria Lídia Magliani (1946-2012) é convidada de honra da Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre, a partir deste sábado (19), às 14h, ocupando o terceiro e o quarto andares da instituição. Tanto espaço assim é porque a inédita exposição dedicada à artista chegará ao local com cerca de 200 obras, recuperando os 50 anos de produção da pintora pelotense.
Fazer tal homenagem não foi um trabalho fácil: exigiu muita dedicação para a localização de tantas obras. Os responsáveis por fazer esse levantamento das décadas de trabalho da artista foram os curadores Denise Mattar, de São Paulo, e o gaúcho Gustavo Possamai, que se dedicaram para criar uma mostra digna da importância de Magliani para a cultura do país.
A dupla fez questão de incluir na mostra as criações da pintora desde a sua época de estudante — no início dos anos 1960 — até 2012, ano de seu falecimento. Para isso, eles recorreram a instituições de todo o Brasil, como o Museu de Arte do Rio, o Museu Afro Brasil, a Pinacoteca e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea do RS, o MARGS, o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, de Pelotas, e a Fundação Vera Chaves Barcellos, de Viamão, totalizando mais de 60 coleções visitadas.
— Conseguimos um conjunto significativo de obras que permite ver cada momento do trabalho dela. Isso faz com que se consiga perceber o percurso, como que uma obra saindo da outra. Não precisa de nenhum curador falando. Está nos olhos, é só olhar — enfatiza Denise, que há anos tenta levar adiante uma exposição dedicada a Magliani.
A artista, que nasceu em 25 de janeiro de 1946, em Pelotas, mudou-se com os pais para Porto Alegre quando tinha quatro anos. Apesar das dificuldades financeiras enfrentadas pela família, desde a adolescência gostava de ler, de ouvir música, de ir ao cinema, ao teatro, de desenhar e de pintar. Essa dedicação à cultura fez com que Magliani entrasse para a universidade, sendo a primeira mulher negra a se formar no atual Instituto de Artes da UFRGS. Ela, porém, não se classificava como artista plástica, mas sim como pintora.
— Artista plástico faz muita coisa. Eu só pinto, desenho, gravo, tudo derivado da pintura — dizia ela.
"Não é agradável"
Para Denise, a arte de Magliani "não é nem um pouco fácil". Tanto que a curadora destaca que uma frase de Iberê Camargo de 1993, na qual o artista disse que não nasceu para enfeitar o mundo e que pinta "porque a vida dói", poderia ser da pintora pelotense, que, por sinal, em 1997, escreveu: "Eu gostaria de dizer às pessoas que veem os meus quadros: sinto muito, senhores, não é agradável".
E essa relação entre esses dois pilares da arte gaúcha não ficou apenas na forma como eles se expressavam em suas obras. Nas pesquisas feitas no material da artista, foi encontrada uma carta de Iberê para Magliani, datada de 1992, na qual o pintor escreveu: "Nós dois temos a mesma meta, o mesmo ideal, a mesma devoção. Haveremos de deixar nossos rastros neste chão em que nascemos". Ele próprio enxergou algo em comum entre as suas obras.
— Ela não tinha a mínima intenção de fazer uma arte que fosse para agradar, muito pelo contrário, era uma arte para incomodar, para fazer refletir, para fazer pensar — explica Denise.
A curadora enfatiza que Magliani levantava questões importantes em séries: Elas apresenta mulheres gordas e seminuas, que considerava uma espécie de retrato interior da humanidade, criando uma sensação de sufocamento; Brinquedo de Armar é baseada na ideia de que a mulher é um brinquedo que é armado e desarmado constantemente. Já as cabeças criadas pela artista em seu período vivendo mais retirada em Tiradentes, em Minas Gerais, compõem as séries Todos e Retratos de Ninguém. Há também a série Casais, em que os homens estão sempre vestidos, pois a artista considerava que eles nunca se despem totalmente nas relações.
Para Denise, o fato de a pintora não ter tido medo de abordar temas espinhosos e inclusive ter criado obras desafiadoras durante o período da ditadura militar vem de seu período como ilustradora nos jornais de Porto Alegre, especialmente quando atuou em Zero Hora, na década de 1970:
— Esse caminho que ela trilha de enfrentar a ditadura de cara lavada, indo em frente, decorre do período em que ela trabalhou como ilustradora de Zero Hora. Ela solta o traço, se solta, porque tem que trabalhar muito rapidamente e em um momento de muito desafio, muito agressivo. Então, acho que ela alcança uma liberdade que ela se dá de enfrentar tudo e pronto.
A mostra, em ordem cronológica, apresenta as transições da pelotense como artista, como quando se muda para São Paulo, na década de 1980, deixando de lado os tons fechados e de cor sépia para apresentar um tracejado mais marcante e com muito colorido, realizando, segundo a curadora da mostra, uma pintura mais "marginal". Além disso, duas das três obras da artista que estiveram na Bienal de São Paulo de 1985 foram localizadas e estão na Fundação Iberê Camargo para visitação.
— Ela era uma pessoa interessada nos problemas da humanidade, mas principalmente a obra da Magliani é de caráter reflexivo do ser humano, interno. Ela reiteradamente falava isso nas entrevistas e nos textos dela — conta Denise, destacando que, por isso, foi feito um caderno com este material textual, juntamente com o catálogo das obras, para complementar a exposição.
As frases da pintora, assim como fotos dela, integram a mostra, interligando os dois andares da Fundação Iberê e recheando os corredores, em uma celebração à vida e à obra da artista.
— E uma coisa maravilhosa aconteceu devido à mostra: a gente fez o pessoal dos museus ir lá mexer nas obras da Magliani, para poder emprestar. E em todo o lugar, quem mexeu falou para a gente: "Nossa, que trabalho incrível". Então, acho que o nome da Magliani começou a ser novamente levantado no Brasil inteiro — celebra Denise.
Exposição "Magliani"
- Abertura neste sábado (19/3), às 14h. Em cartaz até 31 de julho.
- Visitação às quintas (entrada gratuita, por ordem de chegada, conforme lotação máxima) e de sextas a domingos (ingressos à venda pelo Sympla a R$ 20 para uma pessoa ou R$ 30 para duas). Horário: sempre das 14h às 18h (conforme agendado no momento da compra do ingresso).
- Fundação Iberê (Av. Padre Cacique, 2.000, bairro Cristal), em Porto Alegre.