Por Elisandro Rodrigues
Pedagogo, doutor em Educação, membro do Nuppec (Eixo Psicanálise, Educação e Cultura)/UFRGS
“Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação.”
Walter Benjamin, em Passagens
Uma pequena peça no meio de uma sala. Essa é a imagem inicial da exposição PODIUM. Ao entrar no 5º andar da Casa de Cultura Mario Quintana, no Espaço Maria Lídia Magliani, a caminho do Jardim Lutzemberger, somos lançados em um universo, sustentado por um fio de memória. No caminho que se abre para o jardim, um “PO DI UM”. Uma pequena peça do universo de obras de Arthur Bispo do Rosário. A obra de Bispo do Rosário é o fio de montagem que Edson Sousa e Elida Tessler, curadores da exposição, utilizam para costurar uma conversa com outros 10 artistas.
No texto que abre a exposição, Edson e Elida escrevem sobre “o minúsculo e monumental pódio, objeto icônico desses lugares reservados aos vencedores. Contudo, esse pódio é seccionado como se desmontasse o objeto para nos interrogar sobre a lógica do poder do um. Pode um?”. Bispo do Rosário desmonta a palavra “po-di-um” como quem desmonta a memória, abrindo um furo no futuro, uma utopia. Utopia como um corte, como uma rasura na imagem que nos coloca em movimento de memória e imaginação.
Em conversa na abertura da exposição, realizada no dia 7 de outubro, Ricardo Resende, curador do Museu Arthur Bispo do Rosário, comentou sobre uma fala do artista. Ao ser perguntando se poderia realizar a troca de uma obra dele pela de outro, disse:
– Se eu tirar uma peça daqui, desmonto o universo.
Quem sabe essa cisão, a desmontagem da palavra, diga da abertura de possíveis frestas a outras constelações, enquanto memória do mundo, que nos são apresentadas nessa exposição de forma a não desmontar o universo de Bispo do Rosário, mas, sim, mantendo esse universo conectado por um fio.
Fios inomináveis que abrem furos no tecido nas obras de Natalia Leite, que, assim como Luiz Guedes, que tece fios incontáveis sobre o tempo, viveram internados durante a maior parte de suas vidas no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre. Linha que se conecta com a vida de Bispo do Rosário, que viveu, também, grande parte de sua vida no Hospital Psiquiátrico Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Nos bordados de Natalia Leite, seus fios coloridos desenham memórias em vários formatos: casas, pessoas, animais, objetos. Em um breve ensaio chamado de Sobre o Fio, Georges Didi-Huberman escreve que “o fio é algo muito simples: apenas uma linha no espaço. Mas é também algo de muito complexo: um novelo, um emaranhado”. Emaranhados de linhas é o que vemos no “verso” da obra de Natalia Leite, o avesso da imagem, as tramas do tempo em 14 casas à espera, assim como os 22 e 23 relógios nas imagens desenhadas de Luiz Guedes. Uma espera que é “a esperança que nos faz lutar”, como escrevia Lydia Francisconi, interna do HPSP e, assim como Natalia e Luiz, participante da oficina de criatividade que hoje tem status de Museu Estadual Oficina de Criatividade (MEOC-HPSP).
Didi-Huberman comenta que o fio liga, conecta, e diz que “o fio está sempre por um fio. Essa é a sua beleza – seu belo risco – e sua fragilidade”. O trabalho Tierra, da artista visual e poeta guatemalteca Regina José Galindo, apresenta esse belo risco, o inconcebível de um corpo que funda uma pequena ilha utópica resistente ao apagamento da memória. O universo de “po-di-um”, enquanto imagem, queima indefinível pela memória das pequenas narrativas de Otacilio Camilo xilogravadas em caixinhas de fósforo. Molha-nos, criando um ilhota em meio à geografia corporal, na obra incontornável de Maria Ivone Santos. Coloca-nos à procura de lugar no incabível do pódio e das casas de Vivi Pasqual. Lampeja pequenos pontos de luz, com a imaginação do invisível, nas fotos de Evgen Bavcar.
O fio arquivista e colecionador do mundo das coisas, de Bispo do Rosário, é trazido por Amanda Teixeira, de forma impossível, nos 26 botões e nas 22 pedrinhas que cabem dentro de uma caixa de fósforo ou na coleção incomensurável de objetos abandonados, nos fundos de uma casa de Eduardo Montelli, que faz morada no Jardim Lutzemberger. Letícia Bertagna tece o fio que desenha o inatingível dessa constelação, em um ponto que determina o “aqui”, ao transformar a palavra em um objeto pessoal, nas linhas que bifurcam os caminhos.
Edson e Elida realizaram uma montagem em torno da memória que conecta o fio do universo em torno de uma obra de Arthur Bispo do Rosário, com uma constelação de artistas que lampejam possíveis, como pequenas brasas, onde basta um sopro para reavivá-las no escuro de nosso tempo.
PODIUM
Exibição de obra de Arthur Bispo do Rosário em diálogo com outros 10 artistas. Curadoria de Edson Luiz André de Sousa e Elida Tessler. No Espaço Maria Lídia Magliani, 5º andar da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736), em Porto Alegre. Visitação até 18 de dezembro, diariamente, das 10h às 20h. Entrada franca.