Por Roger Lerina
Jornalista e curador de “Sobre o que Sonha”, exposição de Sandro Ka na Galeria Ecarta
A ironia, a crítica e a derrisão sempre serviram como estratégias de abordagem para Sandro Ka. Em sua trajetória, o artista lançou mão de diferentes suportes e linguagens para expressar sua poética motivada por uma inteligente ressignificação da arte e seus códigos, da sociedade e seus mitos, da cultura e suas regras. Esse jogo de (des)construir está posto em Sobre o que Sonha, exposição com inauguração marcada para esta sexta-feira (4/11) na Galeria Ecarta, em Porto Alegre (veja informações sobre visitação ao final deste texto).
O centro de gravidade da nova individual de Sandro Ka é Refazer o Feito, instalação em progresso que desafia o visitante a colaborar para sua hipotética conclusão. Ícone imperativo de uma ideia de união, a bandeira do Brasil surge fragmentada nas milhares de peças de um quebra-cabeças. Não há um gabarito, um modelo de montagem – e quem sabe isso não seja necessário: o artista confia que saberemos como montá-la de memória. Mas será que saberemos mesmo? Nos últimos tempos, o Pavilhão Nacional vem sendo esvaziado de sua função simbólica de catalisador concreto e afetivo da vontade de construção de um Estado, fundamental no reconhecimento da população como pertencente a uma nação, que se sobrepõe – ou apaga – todas as diferenças, tornando-se emblema que indica a divisão entre os lados em disputa pela hegemonia de projeto político do país.
Na série Paisagem Comum (2017), o artista já acrescentara o quebra-cabeças a suas práticas. Naqueles trabalhos, porém, não havia participação direta do público: as paisagens eram propostas somente pelo artista, sempre incompletas e compostas por imagens díspares, que não formavam unidades visuais coerentes – a despeito do encaixe efetivo entre as peças. Já Refazer o Feito convoca desde seu título circular a uma ação talvez impossível: remontar em sua integridade a bandeira do Brasil fisicamente – mas também, e sobretudo, simbolicamente. Ao disponibilizar para livre manuseio as 4.608 unidades embaralhadas do quebra-cabeças, o artista propõe uma tarefa cuja dimensão extrapola o indivíduo e solicita o coletivo. Só o trabalho conjunto, para além das idiossincrasias particulares, pode resultar na refundação.
Orbitando essa possibilidade de um vir-a-ser, outros trabalhos também exploram as possibilidades plásticas, simbólicas e mesmo lúdicas da bandeira nacional. Ilusão preenche um nicho da galeria com um papel de parede que reproduz fileiras de ilustrações geometrizadas da bandeira em vermelho, azul e branco; depois de manter a vista fixa na imagem, o observador é convidado a olhar para uma parede branca ao lado – onde então, graças à ilusão de ótica, é possível enxergar a bandeira em sua versão verde e amarela. Já Geometria Plena provoca o visitante a manipular três carimbos com as formas geométricas da bandeira separadas, estampando em papel a imagem que quiser do estandarte – seja ela fiel ao original ou desconstruída.
O quebra-cabeças também serve de suporte e linguagem para outras duas séries que retomam o expediente já utilizado antes pelo artista. Em Nova República, criada a partir dos retratos oficiais dos oito presidentes que governaram o Brasil desde 1985, as peças encaixadas formam figuras quiméricas, cujas imagens distorcidas suscitam comentários acerca dos compromissos e desvirtuamentos dos políticos e das projeções que fazemos desses líderes – estampas que, para além de representarem uma visão fragmentada e caótica dos retratados, espelham nossos próprios julgamentos respeito dos poderosos. Por sua vez, Lição de História exibe recombinações em quebra-cabeças de cenas históricas, presentes no nosso imaginário e construídas a partir de certa narrativa ocidental triunfalista dominante. Ilustrações e pinturas célebres que formam a iconografia pátria oficial são rearranjadas no tabuleiro. Borramentos, montagens e desmontagens servem de estratagema para a criação de outras narrativas.
Sobre o que Sonha apresenta outras provocações à reflexão sobre o crucial momento histórico-político do país, como um vídeo que registra um elefantinho de brinquedo tocando um tambor e cuja imagem é multiplicada na tela, transformando gradualmente o solitário boneco em uma multidão barulhenta. Rebelião lembra assim outra prática artística de Sandro Ka: o ready-made, esse gesto duchampiano inaugural das vanguardas modernistas que retira os objetos de seus contextos originais banais e os imanta com outros significados e potências pelo simples deslocamento inusitado.
Se na fachada da Fundação Ecarta a reprodução da fotografia que dá título à exposição – mostrando uma barraca de morador de rua com uma bandeirinha brasileira e sem ocupante, ladeada por vassouras – é índice amargamente irônico da nossa fratura social, o nome da obra que recebe o visitante na entrada do espaço expositivo traz uma saudação alvissareira: Esperança.
A lição de história que Sandro Ka esboça ainda está para ser sonhada por nós.
Sobre o que Sonha
Obras de Sandro Ka, com curadoria de Roger Lerina. Na Galeria Ecarta, espaço que integra a Fundação Ecarta (Av. João Pessoa, 943) em Porto Alegre. Visitação até 4/12, de terças a domingos, das 10h às 19h, inclusive feriados. Entrada franca.