Por Guilherme Mautone
Doutor em Filosofia (UFRGS), editor da Revista Philia, coordenador do Colegiado Setorial de Artes Visuais do Rio Grande do Sul
Neste mês de outubro, três espaços de Porto Alegre serão habitados pelas palavras, embora não de modo usual. É um truísmo o fato de que nossas vidas estão desde sempre permeadas pelo discurso e, portanto, pela linguagem. Ligamos a TV ou o celular, palavras deslizam rapidamente pela tela; abrimos a porta da rua, um anúncio qualquer se torna visível; anotamos algo, e a palavra brota, feito mágica, da ponta do lápis que nossos dedos comandam. Esses gestos habituais são, no curso de uma vida, repetidos tantas e tantas vezes — mas, quando realmente os notamos?
No correr da vida, as palavras imperam, funcionam; tudo vai bem. E porque tudo corre, desde sempre, acabamos não lhes prestando atenção. Tudo se naturaliza, pois acontece de modo cotidiano. Nossa linguagem, como nos lembrou Wittgenstein (o curioso filósofo austríaco), é uma forma de vida humana. Ela é nosso mundo, mas também seu intransponível limite. Para além dele, habita o indizível, o inefável. Isso tudo parece acontecer de modo inteiramente comum, sem que tomemos distância, ainda que mínima, do fluxo da vida e do turbilhão que nela as nossas palavras agitam. Pelo menos até o instante em que deparamos com um sutil desvio. Nele, uma inversão acontece; o cronômetro para, o relógio silencia e é, na verdade, como se uma luva fosse de repente virada do avesso. Pois ali se fez, diante de uma singela transgressão, também um convite para pensarmos sobre como a palavra deixou de ser banal na medida em que foi transformada na matéria viva de um trabalho contundente de observação do cotidiano que ela igualmente constituí. Esse trabalho, profundamente artístico (e filosófico) quem o faz há anos é Elida Tessler, artista contemporânea gaúcha.
Nesses espaços onde a palavra desde sempre circula — universidade, galeria e biblioteca —, Tessler nos convida a um exercício de demora por meio do qual podemos inventar novas possibilidades de pensar sobre o que nos é familiar na própria linguagem, ainda que para isso tenhamos que vê-la assim: desviada, traduzida — tornada infamiliar. O Centro Cultural da UFRGS, a galeria Bolsa de Arte e a Biblioteca Pública do Estado receberão 11 obras da artista visual, produzidas a partir da sua cumplicidade com a literatura e da sua amizade com Donaldo Schüler, escritor e filósofo, que neste 2022 comemora 90 anos.
Através da mostra Palavrar, com curadoria de Eduardo Veras e Gabriela Motta, esses espaços exibirão um conjunto de obras que resguardam, cada uma a seu modo, distintas investigações nas quais a palavra assume protagonismo e os escritores (entre eles o próprio Donaldo) tornam-se parte de um diálogo sustentado há anos pela artista. No vaivém da palavra, persiste a conversa — amiudada, interminável e íntima — que Tessler mantém com a linguagem, a literatura e seus fazedores.
É preciso lembrar de Canetti, escritor búlgaro, e seu A Consciência das Palavras, quando sugeriu duas ideias. A de que as palavras jamais nos abandonam, sobretudo quem com elas estabelece um tipo peculiar de paixão. E a de que essa paixão pelas palavras, quando assumida no desejo como ofício de vida, leva-nos a reescrever sempre o mesmo livro, o mesmo texto; em vez de simplesmente nos calarmos.
No Centro Cultural da UFRGS (a partir deste sábado, 15/10), mais de 500 pratos foram serigrafados com palavras – todas no infinitivo, tempo verbal suspensivo da ação que ainda... — tiradas do livro de Haroldo de Campos A Arte no Horizonte do Provável e dispostos pelas paredes. Como se formassem galáxias gramaticais (imagem ao gosto de Haroldo), esses muitos pratos constelados pelo espaço agora se mostram como convites à demora: freiam o turbilhão da vida, convidam à observação atenta das palavras também como imagens; demandam repensar a palavra do outro, suportá-la. Ademais, possibilitam experimentarmos o trabalho de Tessler em sua própria duração; e as palavras que ela usa, desvia, traduz, transforma em seu processo. Já na Bolsa de Arte (a partir de 22/10, mesma data em que ficam disponíveis para visitação os trabalhos da Biblioteca Pública), habituais garrafas de vinho esvaziadas em encontros amigáveis se transfiguram num texto atípico que, começando pelo rótulo do vinho Ulysses (herói de Ítaca, cujo périplo é narrado na Odisseia de Homero; mas também o título do livro de Joyce), permite dizer de viagens, deslocamentos e passagens. E da chegada que é cada encontro.
A obra de Tessler não é só oportunidade de observar sua singular conversa com as palavras, ou sua cumplicidade com a literatura. É, especialmente, a ocasião de apreendermos nos seus métodos — seus protocolos e regras de transformação do texto – os modos delicados de se abrir uma brecha no habitual, notando nele as repetições e as descontinuidades que, como disse Georges Perec, passam a cada dia e retornam a cada dia: o banal, o cotidiano, o habitual. Nessa interrogação do habitual a qual Tessler nos convida talvez também repouse um projeto novo, inadiável, em que a ética e a estética se encontram, tecendo-se juntas.
Palavrar
- De Elida Tessler, com curadoria de Eduardo Veras e Gabriela Motta.
- Trata-se de uma série que inclui uma grande instalação composta de pratos brancos com verbos no infinitivo grafados em preto, todos retirados do livro A Arte no Horizonte do Provável, de Haroldo de Campos. Este e outro trabalho inspirado no mesmo livro estarão no Centro Cultural da UFRGS, onde ocorre a abertura da exposição, às 11h deste sábado (15/10).
- O projeto também é composto de outros trabalhos, que estarão expostos a partir do próximo sábado, dia 22/10, na galeria Bolsa de Arte e na Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul, também em Porto Alegre.
- A exposição homenageia o escritor, professor e tradutor Donaldo Schüler, que acaba de completar 90 anos e que manteve importante interlocução com Haroldo de Campos e com a própria artista.