Cerca de 90% dos museus de todo o mundo fecharam as portas em decorrência da pandemia de coronavírus, segundo levantamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). No Brasil, as instituições estão desde março sem receber visitantes e seguem à espera das medidas de flexibilização para retomarem as atividades em meio a definição de protocolos de segurança que vão da diminuição do fluxo de pessoas nos espaços à obrigatoriedade do uso de máscaras e do distanciamento social na circulação. Exemplos de como será essa nova realidade estão vindo da Europa, onde alguns dos mais importantes museus estão reabrindo.
Em Porto Alegre, museus e bibliotecas geridos pela prefeitura já reabriram seguindo protocolos de segurança semelhantes aos vistos no Exterior. É o caso do Museu Joaquim José Felizardo, na Cidade Baixa, por exemplo, onde apenas duas pessoas podem ficar na sala de exposição. A capacidade do espaço também foi reduzida em 50% e o uso de máscaras é obrigatório. Já instituições do Estado, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), e privadas, a exemplo da Fundação Iberê Camargo, ainda não têm prazo de reabertura, mas já trabalham nas diretrizes a serem seguidas assim que o sinal verde for dado pelas autoridades.
O que é o jornalismo de soluções, presente nesta reportagem
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Um efeito de tudo isso é certo: foi-se o tempo em que era possível entrar livremente em um museu, passear sem compromisso pelos corredores, ficar horas e horas admirando obras de arte sentado ou se infiltrar em aglomerações para chegar perto daquela pintura tão famosa. Seja em Porto Alegre ou em Paris, o coronavírus está mudando as experiências para os amantes da arte, determinando um "novo normal" para as visitações e ressignificando todo o setor.
Acesso controlado e menor capacidade
A Europa, berço das instituições mais visitadas do mundo, já ensaia a reabertura após a flexibilização do isolamento social em países como Espanha, França, Itália e Bélgica. A retomada veio acompanhada de um protocolo com rígidas medidas de segurança e higiene que obedece a um padrão e começa a ser pensado e replicado no Brasil. O controle de público e o número limitado de visitações são as principais modificações no acesso aos museus no período de flexibilização. Novidades já vistas em outros países incluem reserva antecipada, compra do ingresso pela internet, redução da capacidade do espaço pela metade e medição da temperatura corporal na entrada.
Diferentemente de uma casa de shows ou um teatro, os museus têm a vantagem de serem espaços onde há uma maior facilidade de organização da entrada e da saída do público. Porém, há um sinal de alerta em relação aos acervos: a conservação de algumas obras pode exigir uma sala mais fechada e sem entrada de luz natural, com poucas trocas do ar no ambiente.
— Temos que ter nesses espaços algum mecanismo de troca de ar, seja com janelas ou portas abertas. Se isso não for possível devido às especificidades do local, seria interessante ter um sistema de troca de ar para aquele espaço — pondera o médico infectologista Diego Falci, presidente em exercício da Sociedade Riograndense de Infectologia.
— O desafio dos museus hoje não é controlar a entrada, mas sim estabelecer algum protocolo de circulação dos espaços — avalia Francisco Dalcol, diretor-curador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), instituição na Capital que ainda estuda uma reabertura com segurança para funcionários e visitantes.
Percurso único e distanciamento
Museus em Portugal e na Bélgica solucionaram o problema da circulação com a elaboração de uma trilha dentro dos prédios, a ser feita em um tempo pré-determinado: o visitante entra por uma porta, faz o caminho unilateral e sai por outra porta diferente, sem voltar ao início. O percurso único corta a liberdade do passeio à revelia no museu, mas evita aglomerações e contribui para o distanciamento de até dois metros entre as pessoas. Porém, nem todas as instituições têm estrutura para isso.
— O Margs não tem um percurso fixo. Temos um prédio com dois andares, galerias expositivas e a entrada e a saída é pela mesma porta. Estamos estudando formas de ter algum sentido único de circulação em lugares compartilhados, como corredores e escadas — explica Dalcol.
Já a arquitetura de outros prédios pode contribuir para o distanciamento. No Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, além do espaço interno robusto, não há corredores, paredes ou pilares que atrapalhem a circulação dos visitantes.
— O público que visitava antes já tinha uma forma diferente de participar, uma cultura de ter um certo distanciamento entre as pessoas e de não tocar nos objetos. Temos essa vantagem de conseguir controlar o fluxo de pessoas e ter um espaço muito generoso. Mas, no caso de espaços mais estreitos, vai ser muito importante a ordenação das visitações, com setas no chão, mostrando um caminho a ser feito — analisa o diretor-geral do MAM, Fabio Szwarcwald, que já estuda novas regras para uma futura reabertura do espaço.
Respeito aos protocolos
Seja dentro de um museu ou de qualquer outro lugar público, o retorno das atividades também passa pelo bom senso e pelo respeito dos visitantes. Na Europa, a maior parte das instituições reabriu as portas com obrigatoriedade da máscara, com frascos de álcool gel espalhados em pontos estratégicos, para uso e abuso da higienização constante.
— Tem muita gente por aí que ainda acha que não precisa usar máscara. Aí não adianta nada. A única saída que existe é o cuidado. Que começa pela máscara, vai da higienização dos pés e das mãos e chega no distanciamento. São três coisas simples, mas essenciais — avalia Emilio Kalil, superintendente da Fundação Iberê Camargo.
Szwarcwald, do MAM, também ressalta o respeito aos protocolos de convívio e de saúde, essenciais para a reabertura dos espaços culturais:
— Acredito que o conceito das pessoas já mudou. Elas sabem da gravidade da situação, e o nosso público tem essa consciência de não criar esse fator de risco à saúde, para respeitar elas mesmas e o próximo.
— Nós vamos cuidar muito para que não seja um discurso impeditivo. Preferimos usar uma linguagem mais instrutiva, até para transformar o museu em um lugar de respiro nesse período, principalmente para as pessoas que têm conexão com a arte — explica Dalcol, do Margs, explicando que aposta na informação para conscientizar o público no retorno ao museu.
A se observar que a situação brasileira em relação ao coronavírus ainda exige cautela. Para o médico infectologista Diego Falci, os protocolos de segurança impostos nas instituições podem proporcionar a retomada das atividades a partir do momento em que a pandemia estiver sob maior controle.
— Temos que entender que o momento epidemiológico do Brasil e do Rio Grande do Sul é muito diferente do momento europeu. Estamos em uma curva ascendente. Estamos sem saber se já atingimos ou se vamos atingir o pico de casos. Na Europa, os países já estão em curvas descendentes. Aqui, agora é o momento de fazermos discussões e readequações dos espaços — pondera Falci.
Mais ar livre, menos salas fechadas
Marcello Dantas, um dos principais nomes da atualidade na curadoria de arte no Brasil, acredita que a pandemia trouxe uma oportunidade para os museus se reinventarem, causando mudanças no consumo e também na forma de se fazer arte no mundo.
— Temos que pensar em uma cultura que não precise de uma aglomeração massiva para existir. Que várias peças de teatro possam ser feitas para 50 pessoas. Que tenhamos uma maior oferta de atividades culturais em uma escala menor, mais distribuída. No caso dos museus é muito fácil fazer isso. Só se precisa regular as capacidades e o público, coisa que já acontece — afirma.
Exposições ao ar livre são uma das mudanças que poderão ser vistas nas artes visuais a médio e longo prazo, no conceito de museu à céu aberto. Já trabalhos que exigem toques corporais podem ficar na geladeira por um período por conta do perigo de compartilhamento de materiais.
— A gente já estava montando uma estratégia de exposições ao ar livre antes da pandemia, pois temos um jardim maravilhoso, com vista incrível para o mar, para a Baía de Guanabara. Agora a ideia só se potencializa. Essas ações serão muito importantes e acredito que poderão ser procuradas pelo público — projeta o diretor do MAM.
— Acho positivo a valorização da arte pública e a criação de obras pensadas para sobreviver ao espaço cultural aberto. Seriam mais parques de arte e menos salas fechadas com pinturas. É uma mudança de paradigmas de como um museu irá funcionar — prevê Dantas.
No caso de ferramentas compartilhadas para auxiliar deficientes auditivos e visuais a terem acesso aos trabalhos, como audioguias e fones de ouvido, o caminho será a higienização a cada uso.
— Eu não acredito na ideia de abolir a interação do espectador com as obras, pois em um museu interação também significa inclusão. Mas é hora do touch screen (toque sensível em telas) desaparecer, por exemplo — analisa o curador.
Reconexão local
Se, por um lado, a restrição de público pode ser considerada ruim, por outro ela pode ser boa para promover uma reconexão não só com os amantes da arte, mas também com novos públicos. Com menos movimento e sem turistas enlouquecidos atrás das belezas da Capela Sistina, os moradores da Itália puderam contemplar com mais calma e clareza o registro da sua própria história no primeiro dia de reabertura dos Museus do Vaticano, em 1º de junho, sem bater de ombros com outras pessoas e desviar de cabeças.
— Quando a população local passa a abraçar os museus antes dos turistas, isso é um bom sinal de ligação com esses espaços. Será que os museus e as comunidades não precisam se reconectar para criar novos vínculos além do turismo? — pergunta Dantas.
— Os museus precisam entender o seu papel social. O público tende a frequentar mais quando ele se sentir conectado ao museu, não só a uma obra de arte. É preciso entender o contexto, a importância que a cultura tem na formação de um cidadão. Sair de uma bolha de ser um lugar de contemplação de artistas renomados para entrar em contato com as demandas da sociedade — conclui Szwarcwald.