Poucas vezes a expressão mar de gente foi tão apropriada para descrever uma cena como no final da tarde daquele domingo, 6 de março de 1988. Quando Bebeto Alves subiu ao palco montado junto ao Bar Escaler, às margens do Parque da Redenção, a multidão que se formou para assistir ao show literalmente tomou conta da José Bonifácio, até encostar na porta da Igreja Santa Terezinha, do outro lado da avenida. Em decorrência disso, os católicos que tentaram adentrar o templo para ter acesso ao culto religioso no bairro Bom Fim, na Capital, foram obrigados a dar meia volta.
– Desde 1931, quando a igreja foi inaugurada, pela primeira vez não aconteceu a missa dominical das 18h na Santa Terezinha – afirma o dono do bar, Antônio Calheiros, o Toninho do Escaler, ao comentar os 36 anos do episódio, completados nesta quarta-feira.
O show de Bebeto fazia parte do projeto Encha a Cara de Cultura no Bar Escaler. Como em outras ocasiões, a energia para eletrizar o palco veio do transformador do parque de diversões, que ficava ao lado do bar. Já havia algum tempo, Clovis Ribeiro, administrador do parquinho, não se importava de emprestá-la com a convicção de que o movimento de público trazido pelo Escaler beneficiava os outros negócios daquele cantinho da Redenção. Neste dia, em especial, embora tivesse caprichado na divulgação, como sempre fazia, Toninho jamais imaginou que viria tanta gente. Na época, a Brigada Militar calculou que havia 6 mil pessoas aglomeradas ao redor do bar e outras 20 mil circulando pelo bairro, atraídas pelo evento.
– O que posso te garantir é que me senti numa ilha cercada pela multidão por todos os lados, na frente, atrás e ao lado do palco. Tinha até gente pendurada nas árvores do parque – registrou Bebeto (falecido em novembro de 2022).
Como se o pecado de impedir a missa já não fosse suficiente, aquele início de noite reservaria outras surpresas. Um dos habitués do bar, totalmente embriagado, subiu ao palco completamente nu, exceto pela gravata amarrada em volta do pescoço, para saudar a plateia. Dá para imaginar o escândalo. Na manhã seguinte, 17 entidades civis e religiosas haviam ingressado com ação judicial solicitando o fechamento do Escaler, sob a alegação de perturbação da ordem pública. Mas, ao final do processo, a Justiça deu sentença favorável ao boteco, com o argumento de que ele estava localizado em área estritamente destinada ao lazer e à recreação.
– Nem o papa fecha o Escaler! – comemorou Toninho, em declaração a Zero Hora, ao tomar conhecimento da decisão.
Apaziguados os ânimos, após o incidente ficou estabelecido que, dali por diante, aos domingos, às 18h, o Escaler (que manteve as portas abertas até 2006) silenciaria a música para não prejudicar a missa, trato que foi cumprido pelas bandas de rock com pontualidade britânica.
– Relembrar o show histórico de Bebeto é recordar os dias de plena liberdade que vivíamos no Bom Fim naquele tempo. Acredito que o Escaler tenha sido o último reduto popular e democrático da vida cultural de Porto Alegre – conclui Toninho.