A mistura de sons, por vezes caótica, que paira à noite sobre as pedras seculares da Travessa dos Venezianos até pode surpreender. Afinal, não faz muito tempo, esse reduto histórico da Cidade Baixa era um oásis de sossego no coração do bairro boêmio da Capital. Mas, de alguns anos para cá, a ruazinha que interliga a Joaquim Nabuco e a Lopo Gonçalves virou point noturno, frequentado por uma diversidade de tribos urbanas, que dão ao local um ar de Lapa porto-alegrense.
– Vou pelo menos uma vez por semana na Travessinha, porque é um ponto de encontro de pessoas queridas, cheio de música boa e cerveja a preço justo – diz a escritora e atriz Clara Corleone.
O caldo sonoro vem da música que ecoa do interior das casinhas de porta e janela, apimentada pelo burburinho do público que se acomoda do lado de fora, de copo na mão. Talvez o encanto da Venezianos seja, justamente, proporcionar uma boemia a céu aberto, o que conta muito – quem viveu os anos 1980 não esquece do Escaler, bar com mesas esticadas embaixo dos jacarandás da Redenção, sob o luar e as estrelas, junto ao Mercado do Bom Fim.
A Travessa dos Venezianos une o presente e o passado de Porto Alegre. Penso nisso sentado no banquinho de madeira na calçada, sob a janela do Polvo Cultural, um dos cinco bares da ruela, que a Danuta Zaghetto, proprietária do estabelecimento, gentilmente guarda para mim, quando possível. O calçamento de pedras irregulares original, de 1926, por exemplo, ainda está lá, sustentando a alegria da moçada que se diverte à noite.
Consta que parte do conjunto de 17 casas com pé-direito alto e platibandas (tombado como Patrimônio Histórico e Cultural da Capital desde 1980) tenha sido construída por volta de 1930. Mas, por causa de um detalhe sutil, os estudiosos suspeitam que os prédios da calçada do lado direito de quem chega pela Lopo Gonçalves tenham sido erguidos antes. É que essas casinhas têm os vidros das janelas posicionados do lado de fora, isto é, à frente das venezianas. Em épocas remotas, deixar o vidro bem à vista era sinal de ostentação ou uma forma de valorizar o imóvel, uma vez que o material era caro e pouco acessível à maioria da população.
O nome deriva, provavelmente, da proximidade com a Joaquim Nabuco, denominada Rua dos Venezianos até 1936. Antigos moradores se referiam ao acesso à Lopo Gonçalves como “Travessa da Rua dos Venezianos”.
Com o tempo, o atalho passou a ser chamado de Travessa dos Venezianos. No início do século passado, acolhia a parcela mais pobre do bairro, atraída pelo aluguel barato. Ali moravam jornaleiros, carvoeiros, consertadores de guarda-chuvas e prostitutas. A boemia contemporânea se estabeleceu no primeiro dia do outono (21 de março) de 2019, com a inauguração do bar Guernica, no nº 44. Essa casa, em particular, é especial para mim: ali morou, durante 20 anos, meu compadre, o jornalista Antônio Carlos Rosito (falecido em 1998), que, aliás, teve a iniciativa de reformá-la, definindo o design conservado até hoje.
– Na época, a gente achou importante criar um espaço de cultura e boemia para mudar o perfil e qualificar o ambiente de uma rua tão linda como essa, que ficava praticamente vazia durante a noite – explica o ex-dono do Guernica, Pepe Martini, que já passou o ponto adiante e hoje é sócio do Milonga, na casa ao lado.