Na primavera de 1952, o jornalista Justino Martins (1917-1983), correspondente da Revista do Globo na Europa, esteve em Porto Alegre. Revisitou a cidade que o acolheu quando chegou de Cruz Alta, onde nasceu. Na edição nº 569 da publicação, de setembro daquele ano, escreveu uma reportagem de cinco páginas contando sua rotina de morador da Rue Monge, 55, que fica “nos limites do Quartier Latin com um bairro pobre bizarramente chamado de Kremlin-Bicêtre”, no sul de Paris.
Com bom humor, ele diz que lá tem “a Place Monge, a padaria Monge, a sapataria Monge, a lavanderia Monge, a ótica Monge, e todo o resto, pois tudo naquele quarteirão se chama Monge, inclusive o próprio hotel onde eu morava”. Registra, também, o tradicional mau humor da conciérge, pois, segundo ele, “a madame era insuperável nessa difícil arte de amarelar a vida de seus hóspedes”.
Revela, ainda, o lado bom do local. O aperitivo no bistrô da esquina, a feira de frutas, a carrocinha de flores da madame Sicard, o pão e o vinho, “não aquele com appelation controlée dos restaurantes de luxo, mas o bom ‘pinard’ de 80 francos o litro, cuja entrega, nos pontos de distribuição, é feita em gigantescos caminhões-tanque idênticos aos de gasolina".
Para essa mesma edição, Justino concedeu uma de suas raras entrevistas ao colega Rubens Vidal. Com menos de 40 anos de idade, o repórter, e correspondente internacional, conta que já atravessou o Atlântico 10 vezes e já produziu, segundo sua própria estatística, mais de mil reportagens para a Revista do Globo e o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro:
“Sou um milionário, um milionário sem dinheiro, um milionário de assuntos, nada mais”. Na época, há cinco anos vivendo em Paris, ele relatou fatos políticos, ocorrências humanas, ambientes bizarros, circunstâncias extraordinárias, “sem perder seu contato psicológico com seu público no Brasil”, conforme constatou Vidal. Na conversa, Justino sempre inicia com a frase “quando eu era menino”. Para ele, “viver é ver as coisas.”
Em 1936, cursando medicina, faltou-lhe dinheiro para pagar o semestre. Apaixonado por literatura, deixou de ser médico: os livros o conduziram à Livraria do Globo, onde seu conterrâneo, Erico Verissimo, empregou-o como revisor. Bem antes disso, ainda em Cruz Alta, trabalhou como pedreiro e, depois, entre os 14 e 19 anos, descarregando vagões com sacos de açúcar, arroz e feijão na Cooperetiva da Viação Férrea, o que lhe garantiu um porte atlético.
Na Editora Globo, Justino encontrou o seu caminho e cresceu no jornalismo, junto à revista que ajudava a fazer, chegando até a direção da publicação. Finalizando a entrevista, afirmou:
“Não se pode fazer jornalismo sem ‘parti-pris’ (tomar posição), e é justamente nisso que reside o pavoroso drama da profissão, quando se precisa fazer do jornalismo uma profissão. Vou me defendendo como posso. É na França que se entrechocam verdadeiramente as grandes correntes do pensamento e da política atuais. Enquanto puder, irei ficando por lá, que essa maravilhosa experiência irá servir-me no futuro, para uso próprio.
Eu faço o contrário dos outros: procuro viver primeiro para morrer depois. Aproveito enquanto tenho bom estômago para comer, bons olhos para ver, bom coração para amar e, sobretudo, força de espirito para estudar. Acho que a procura do dinheiro, da riqueza, é a negação da felicidade. Prefiro viver em paz comigo mesmo, fiel a mim mesmo, à minha natureza, às minhas ideias. Seria terrível se, para ganhar dinheiro, eu tivesse que escrever contra mim mesmo”. Como pensava Justino Martins, o tempo e a distância estão cada vez mais parecidos.