Foi exatamente um ano atrás que a médica Paula Martinez começou a trabalhar na Santa Casa de Caridade de Bagé. Naquele 1º de abril de 2019, a recém-contratada chefe da Infectologia do hospital jamais esperava o novo desafio que o futuro iria lhe impor: enfrentar a maior pandemia da história recente. Com 15 casos confirmados da covid-19, Bagé era, nesta quarta-feira (1º), a segunda cidade do Estado mais infectada, atrás somente de Porto Alegre. Para piorar o cenário, a doença começou a se espalhar dentro da Santa Casa, maior hospital da região.
Todavia, pelo menos por enquanto, enfrentar a proliferação do coronavírus não tem sido a maior dificuldade de sua carreira. Aos 37 anos, 12 de profissão, Paula tem no currículo a chefia do Samu de Santa Maria durante o incêndio da boate Kiss e o embate aos 6 mil casos da epidemia de toxoplasmose que assolou o município em 2018.
— Às vezes, eu acho que Deus está me testando — desabafa a santa-mariense.
Entre um plantão extenuante e outro, a médica que acumula mais de seis meses de salário atrasado — em fevereiro, recebeu metade do salário de setembro —, concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
A senhora enfrentou a tragédia da Kiss, a toxoplasmose e agora a covid-19. Dá para comparar as situações?
Hoje, vivo um pouco de cada. A Kiss trouxe o intensivismo, pacientes precisando ventilação agora, já. Vi colegas italianos dizendo ter de escolher quem entubar, isso não me traz memória agradável. Na época, foi assim também, muita gente em muito pouco tempo. A toxoplasmose também foi tenso, eu estava à frente das ações, então ciência e a questão política tinham de se alinhar a partir das minhas decisões. Agora, a gente tem tempo para se organizar enquanto espera o furacão chegar. Mas sem arma, porque não tem remédio.
Como está a situação hoje na Santa Casa?
Estamos com tudo bem encaminhado. Não tenho nenhum paciente grave, apenas quatro casos suspeitos. Temos duas enfermarias, com 37 leitos, e uma UTI com 16 vagas disponíveis. Temos outra UTI com mais 10 leitos, mas para pacientes não-covid, para atender o resto da população.
É suficiente?
Isolar vírus é a coisa mais difícil que existe para um infectologista. Ele se espalha com mais facilidade do que uma bactéria. Parece aquele glitter bem fininho, não sai do corpo de jeito nenhum. Aqui em Bagé, não se tinha a vivência diária que tem em Santa Maria de germe multirresistente, a cultura do uso do equipamento de proteção, o preparo para o isolamento. É preciso reacender essa chama, porque muitas vezes algum médico mais antigo entrava na UTI com a roupa de casa. O que salta aos olhos agora é a necessidade de que o germe do hospital precisa ficar no hospital.
Isso pode ter colaborado para a proliferação do vírus?
Não acho que tenha colaborado, mas o profissional mais antigo resiste mais, resiste à ideia de adoecer, tipo "isso não acontece comigo", e até à ideia de que possa espalhar. Essa resistência existe em Santa Maria também. É a dificuldade de entendimento.
A crise sanitária da covid-19 pode então melhorar os protocolos?
Exatamente. Digo sempre aqui: vocês precisaram ser ameaçados de morte para entender que precisa lavar as mãos, que a roupa do hospital é do hospital, que não é para levar para casa. Mas a partir dessa pressão, o crescimento técnico-científico está sendo excelente. Hoje, tivemos sete testes que deram negativo. Estou orgulhosa.
Como a contaminação começou dentro do hospital, os profissionais de saúde estão sendo vistos com desconfiança?
Demais. Estamos sofrendo bullying, não se pode entrar nos lugares. Funcionários do Samu foram num mercado aqui do lado do hospital e foram cercados, as pessoas perguntando o que eles estavam fazendo lá. Um outro foi alugar uma casa direto com o proprietário, e ele se negou a fechar negócio depois que descobriu o trabalho do rapaz. É cruel. E a questão é que, a partir da transmissão comunitária, se pode pegar a doença até de uma caixa de leite. E é a gente que está atendendo o povo.
As medidas que a cidade está adotando são corretas?
Lavar calçada, não precisa. É uma atitude desnecessária, a água que está faltando para lavar as mãos, pois temos racionamento. A desinfecção dos veículos que entram e saem pode ser eficaz, mas depende do produto. Se for Q-Boa, está valendo, mas o calor da roda girando também mata o vírus. No geral, a contenção está sendo muito eficiente. Mas é preciso segurar a onda.
A cidade está estruturada para um pico? E quando vai ocorrer esse pico?
Na Páscoa. Acho que não vamos conseguir segurar o comércio, há uma pressão muito grande no Brasil inteiro. Espero que estejamos preparados. O uso de ventilador para cada pessoa é de um mês. Temos 26 ventiladores e, se esse pico ocorrer, vai faltar ventilador. Não só aqui.
A senhora tem alguma projeção, acha que Bagé pode ter 100, 200 casos ao mesmo tempo?
Tu não podes me fazer essa pergunta. Tenho de ser a mais pessimista, estar preparada para isso. Pode chegar num ponto como na Itália, de a gente ter de escolher. Como não quero que chegue a isso, vamos nos organizar, porque todo mundo vai entrar em contato com o vírus. Torço para que não seja ao mesmo tempo.
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