Poucos sabem, mas o vinho gaúcho não nasceu na Serra, referência nacional nesse tipo de bebida. O pioneirismo da vitivinicultura no Rio Grande do Sul aconteceu nas Missões, no Noroeste, mais de 250 anos antes dos italianos popularizarem essa atividade, vinda com eles na imigração de 1875. Foi na região missioneira que o jesuíta espanhol Roque González de Santa Cruz introduziu as primeiras videiras no território gaúcho. González fez isso a partir de 1619, com castas descendentes das uvas tintilla, criolla e criolla chica, que vinham da província de Rioja (Espanha). Produzia vinho de missa, óbvio.
Pois agora, após um período de sumiço, os vinhedos retornaram com força à região dos Sete Povos Missioneiros. Produtores criaram lá um polo com castas pouco comuns, numa pegada de enoturismo mais refinado.
Alguns vitivinicultores lançaram no início de março o terroir Nomi (Noroeste e Missões), que está em processo de Indicação de Procedência (IP). A ata de fundação congregou oito vinícolas especializadas em produzir vinhos finos, de uvas selecionadas. Todas apostam num nicho que inclui pousada e tour pelos vinhedos.
Os produtores do Nomi tentam se diferenciar pela adoção de castas que fogem às tradicionais uvas francesas, tão populares no Cone Sul da América (e na Serra, em particular), como os cabernet (sauvignon efranc), merlot, malbec e tannat. Uma das preferências das novas vinícolas das Missões é o cultivo de vinhas italianas, como casavecchia, montepulciano, nebbiolo, sangiovese e nero d´vola. De vinhas francesas não muito comuns (como a pinot noir, a bonarda e a egiodola). Das portuguesas, como touriga, castelão e alvarinho. De espanholas (mourvedre ou monastrell, torrontés e aragonez, também conhecida como tempranillo).
A tempranillo, aliás, tem semelhança com as criollas que eram produzidas pelos pioneiros jesuítas missionários. Já os espumantes produzidos na região possuem cortes (blends) inusitados e já começam a obter reconhecimento nacional.
Além dessas, as vinícolas têm feito experimentações com uvas raras na América. É o caso da xinomavro (grega), da vranac (montenegrina e sérvia, dos Balcãs) e saperavi (georgiana). Estas, segundo especialistas, estão se adaptando muito bem na região, originando vinhos únicos.
— A experimentação é possível porque toda a região tem a maior amplitude térmica do território gaúcho (variação da temperatura ao longo do dia). A mescla de dias quentes e noites frescas, quase frias, é propícia aos vinhos, especialmente para os tintos. Assim como o regime de chuva e outros fatores próprios da região, que possibilitam uma boa maturação e qualidade das uvas — pondera Alexandre Zanchet, um dos participantes do grupo que busca a IP do terroir Nomi.
As vinícolas missioneiras e do Noroeste usam rótulos artesanais, temáticas históricas e buscam um cliente mais refinado, conhecedor de vinhos, ressalta Carlos Boff, da vinícola Don Carlos. Existem roteiros harmonizados com tábuas de queijos, carnes defumadas e frutas finas, além de gastronomia própria, visitações aos vinhedos e estrutura de lazer e pernoite. Vez que outra mesclados a assados campeiros e shows de música nativista.
No caso da Malgarim, de São Borja, os vinhos vêm com nomes guaranis e predominância de uvas espanholas e francesas. Na Don Carlos, de Santo Ângelo, com desenhos inspirados na temática missioneira e nomes como Seppé, Pueblo Guarany e Sete Mistérios. Da Novos Caminhos Wine, com rótulos slim, que remetem ao tipo de uva (PN - pinot noir, por exemplo) e "mínimo de intervenções químicas para preservação do vinho", salienta o proprietário da vinícola, Alcindo Pereira Gomes.
A Casa Tertúlia, de Três de Maio, com amplo espaço gastronômico, usa inteligência artificial "para dosar teor de acidez" e rótulos de garrafas inspirados em figuras medievais, ressalta um dos sócios, Leodir Hilgert. A Weber, de Crissiumal, que realiza teste em mais de 40 novas castas, tem o maior volume de vinhos finos da região noroeste e também aposta muito em jantares temáticos ao ar livre e Wine Garden.
A Fin, de Entre-Ijuís, investe em rótulos gauchescos, como Querência, Charrua e São Miguel Arcanjo - e também produz vinhos personalizados, com marca de empresa ou de pessoas, para presentearem os amigos. A Azienda Bortolini, de Ijuí, testa novas castas em área própria em Esquina Gaúcha (Entre-Ijuís). A Fischer, com sede em Ijuí, compra a maior parte das suas uvas e produz em rótulos próprios, de vinhos artesanais.
Essas são as principais do terroir Nomi, mas a tendência é que outras vinícolas familiares, hoje dedicadas a produtos coloniais, derivem para vinhos finos.
Igrejas e santuários no roteiro
Mas passear pelo noroeste missioneiro é ir muito além da degustação de vinhos. Os atrativos são variados, a começar pelo fato da região ser repleta em história. Foi palco de uma experiência comunitária conduzida pelos jesuítas, que na tentativa de catequização, conseguiram convivência harmônica com os guaranis. Não sem conflitos. O próprio jesuíta Roque González, que produziu os primeiros vinhos gaúchos, foi assassinado junto com outros dois padres, por guaranis que repudiavam a evangelização católica.
Quem der um passeio pelas vinícolas deve aproveitar para conhecer as ruínas de São Miguel das Missões, onde são ensaiados espetáculos diários de luz e som protagonizados por indígenas. É possível também conhecer a história do padre Roque com uma visita a Caibaté, onde há um santuário em homenagem aos sacerdotes mártires.
Já Santo Ângelo, além de outros atrativos, tem uma catedral estupenda, construída ao estilo barroco colonial hispânico, em local onde existiam templos jesuítas antigos e que preserva estátuas e imagens do século 18. A vizinha Ijuí, além de possuir o museu antropológico Dr. Pestana, tem a União das Etnias (UETI, que congrega descendentes de mais de 13 nacionalidades) e uma festa das nações, multiétnica.
Em São Borja, também originariamente ligada aos Sete Povos, é possível respirar a história (é conhecida como Terra dos Presidentes) e a fronteira com a Argentina. Fronteiriça também é Crissiumal, às margens do majestoso e piscoso rio Uruguai. Em Horizontina, no Noroeste, é programa certo visitar o Memorial da Evolução Agrícola, um museu construído com recursos das indústrias de implementos John Deere e da SLC, que apresenta o maquinário - real e de forma virtual, interativa - que tornou a região um celeiro do Rio Grande do Sul.
Voos diários para as Missões/Noroeste
Fazer enoturismo nas Missões é mais fácil do que se imagina. Apesar da distância em relação às capitais, a região é bem servida de malha aérea. O aeroporto de Santo Ângelo recebe voos de Porto Alegre, da Latam (terças, quintas e sábados) e da Azul (diários). A Gol faz voos diários de Santo Ângelo para São Paulo (ida e volta). São quase 60 mil passageiros/ano.
Os paulistas são um dos nichos almejados pelas vinícolas missioneiras. Não tão longe dali, em Passo Fundo, há também um moderno aeroporto com voos diários para São Paulo.
Caso o turista prefira ônibus, a Viação Ouro e Prata conta com coletivos-leito, com direito a lanches diversos e sucos. A viagem entre Porto Alegre e Santo Ângelo sai por R$ 320 o ônibus leito. De avião custa um pouco mais que o trajeto rodoviário. Um voo entre a Capital e as Missões, num turboélice ATR-72, varia de R$ 400 a R$ 600, dependendo de quando for adquirido.
As vinícolas possuem parceria com os hotéis da região e algumas com pousadas, cujas diárias são de pouco mais de R$ 500 por casal. Em alguns casos, oferecem shows de música nativista.