A serpente não viu o homem se aproximando, pelo menos não a tempo de evitar ser pega.
— É a quarta serpente terrestre mais venenosa do mundo e, de longe, a mais peçonhenta da Ásia — explicou William Sargent a um grupo de visitantes em Hong Kong.
Falou na maior calma, como se estivesse anunciando que o jantar está pronto. E ainda perguntou qual de nós gostaria de tocá-la primeiro.
Sargent, 44 anos, é o dono da Hong Kong Snakes Safari, empresa que leva curiosos e aventureiros a passeios noturnos pelos bosques do interior do território. Uns se mostravam mais apreensivos que outros ao ouvir o que ele tinha a dizer sobre o réptil cronicamente incompreendido.
A excursão destaca a riqueza da biodiversidade de Hong Kong, centro financeiro de 7,5 milhões de habitantes mais conhecido pelos arranha-céus do que pelas amplas áreas naturais protegidas. É também uma forma de os urbanoides que sofrem de ofidiofobia enfrentarem seus medos na natureza.
Cerca de 40% da área de Hong Kong consiste em parques, criados nos anos 1970, quando o território chinês ainda era colônia britânica. Por isso, os conflitos entre humanos e animais são inevitáveis com tanta terra protegida a curtas distâncias de áreas urbanas densamente povoadas. Os javalis, principalmente, causam comoção quando saem vagando pelas ruas movimentadas e estações do metrô. As serpentes normalmente evitam se expor, mas, como pelo menos oito espécies nativas têm picada fatal, os riscos são sérios em ambientes fechados com humanos.
Segundo a polícia de Hong Kong, toda vez que uma serpente ameaça o público, é “capturada e presa” por especialistas e enviada ao Jardim Botânico e Fazenda Kadoorie, ONG que também abriga morcegos, pássaros, crocodilos, macacos, tartarugas e pangolins resgatados. A maioria, após algum tempo, volta à natureza.
Sargent, que tinha serpentes como animais de estimação na infância passada em uma das ilhotas ao redor de Hong Kong, é especialista reconhecido pela polícia desde 2015. Ele já fez resgates em presídios, escolas, supermercados, um hangar de aeroporto e o canteiro de obras de uma ala para pacientes com covid-19, de onde tirou um píton de três metros de comprimento. Durante o dia, trabalha com organização de eventos. Também é mediador de uma página educativa no Facebook sobre as serpentes locais.
Picadas matam entre 81 mil e 138 mil pessoas por ano
A Organização Mundial de Saúde calcula que de 81 mil a 138 mil pessoas morrem a cada ano vítimas de picada de serpente, a grande maioria nos países em desenvolvimento. Muita gente sofre lesões permanentes. Dos casos anuais de envenenamento por picada — algo entre 1,8 milhão e 2,7 milhões —, a maioria ocorre na Ásia, em países com parcos recursos médicos.
Em Hong Kong, que tem um sistema de saúde de primeira linha, ninguém morre por envenenamento ofídico desde 2005, segundo as autoridades. Em 2018, último ano do qual há dados, foram registradas apenas 73 picadas, ou seja, uma a cada 100 mil pessoas.
No passeio noturno, Sargent e explicou que o melhor modo de evitar ser picado é simplesmente prestar atenção no pisar e levar uma boa lanterna de cabeça.
— Olhem para todos os cantos possíveis — ensinou James Kwok, naturalista entusiasta.
"O predador aqui sou eu"
O grupo entrou em um córrego com a água no meio da coxa e teve de atravessá-lo andando sobre pedras escorregadias no escuro. Alguns caíram. Sargent viu nossa primeira Sinonatrix percarinata, ou cobra d’água oriental, sobre uma rocha no meio do riacho e a pegou com as mãos nuas.
Ao mostrá-la para o grupo, o réptil acertou sua mão, tirando um fio de sangue. Ele deu de ombros: como não era venenosa, não lhe causaria mal. Mas se via que ela não se sentia nem um pouco satisfeita nas mãos de Sargent.
— Claro que não. Sou o predador, certo? — ele afirmou.
Minutos depois, uma serpente em preto e branco, mais comprida e mais robusta, foi atingida pelo facho de luz da lanterna de um integrante do grupo. “Agilizem, rápido!”, alertou Sargent, meio sussurrando, meio mandando, enquanto o grupo fazia o possível para se organizar rapidamente atrás dele. Em um movimento ágil, Sargent, calçando uma luva protetora grossa, pegou a serpente.
Enquanto o réptil se contorcia, ele explicou que era uma Bungarus multicinctus, espécie noturna altamente tóxica, cujo veneno ataca o sistema nervoso central. Todo mundo tremia de ansiedade, mas Sargent tentou nos acalmar dizendo que, em três décadas lidando com o espécime, nunca o tinha visto em ação, já que seu primeiro instinto era fugir, e não atacar.
Encorajados, nós nos aproximamos para tocar a barriga da serpente — surpreendentemente macia e delicada, parecida com bochecha de bebê — e nos maravilharmos examinando de perto as belas escamas.