Em menos de um mês, a cidade de Pelotas, no sul do Estado, poderá ser alvo de um ato de preservação inédito no Brasil. Em 15 de maio, o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) decidirá se o conjunto histórico do município e o modo de fazer doces da região vão se tornar patrimônio nacional ao mesmo tempo. Caso se confirme, será a primeira vez na história do Iphan que será realizado de forma simultânea, em um mesmo lugar, o reconhecimento de um patrimônio material (o conjunto arquitetônico) e o registro de um patrimônio imaterial (a tradição doceira).
— O Iphan, há algum tempo, tem estimulado que os processos sejam pensados não como material e imaterial, mas no sentido de patrimônio cultural. Em Pelotas, optamos por fazer um estudo geral porque se percebeu a importância do ciclo do charque, que permitiu a chegada do açúcar e fez com que a cidade desenvolvesse uma cultura própria. Não tinha sentido tratar de forma isolada — explicou Andrey Rosenthal Schlee, diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan.
A análise conjunta parte do princípio de que a produção de charque, principal atividade econômica de Pelotas entre o final do século 18 e o começo do século 20, teve influência direta sobre o desenvolvimento da tradição doceira na região. Isso porque, a venda de carne para o Nordeste permitia o acesso ao açúcar produzido nesses Estados, que era trazido pelos mesmos navios.
A concepção do parecer que será avaliado pelos conselheiros — 23 pessoas, entre representantes de instituições públicas, privadas e da sociedade civil — teve origem em quatro processos isolados em que cidadãos pelotenses que pediam o tombamento de diferentes partes da cidade e em um inventário sobre a tradição doceira elaborado entre 2006 e 2008. Natural de Pelotas, o atual diretor do Iphan esteve diretamente envolvido: antes de trabalhar no órgão — quando assumiu como professor de arquitetura da Universidade de Brasília, em 2002 —, ele solicitou o reconhecimento do centro histórico da cidade como patrimônio nacional.
O documento elaborado pelo Iphan demandou um estudo que envolveu pelo menos três superintendentes no Rio Grande do Sul e diversos técnicos do órgão que vieram de Brasília para avaliar os prédios históricos e conhecer o processo de fabricação de doces. A proposta prevê o tombamento do que foram definidos como sete setores: as praças Cipriano Rodrigues Barcelos, Coronel Pedro Osório, José Bonifácio e Piratinino de Almeida, o Parque Dom Antônio Zattera, a Charqueada São João e a Chácara da Baronesa. Ela descreve as características arquitetônicas de cada um dos lugares e estabelece diretrizes para a preservação desses locais e de prédios importantes do entorno, como o Mercado Público Central, a Catedral São Francisco de Paula e o Teatro Sete de Abril, entre dezenas de outros _ alguns deles já tombados ou inventariados em outras esferas. A partir de um eventual tombamento nacional, os locais passarão a ter a gestão compartilhada entre o poder público municipal e o governo federal.
Já o registro da tradição doceira como patrimônio imaterial abarca, além de Pelotas, municípios próximos — a chamada "Antiga Pelotas", que envolve Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, São Lourenço e Turuçu . O reconhecimento prevê um plano de salvaguarda do modo de produzir doces na região, com ações que visam à manutenção da preservação e transmissão de conhecimento de uma geração a outra. Será contemplada tanto a produção dos chamados doces finos, que fizeram a fama da cidade e estão ligados à área urbana e à tradição europeia, quanto os doces coloniais, desenvolvidos principalmente zona rural e vinculados à história dos imigrantes europeus e dos negros trazidos como escravos à época do ciclo do charque. Caso ocorra, este será o segundo bem imaterial do Rio Grande do Sul reconhecido pelo Iphan: o único até hoje foi a Tava, lugar de referência para os Guarani-Mbyá, registrado no Livro dos Lugares — a tradição doceira deverá entrar no chamado Livro dos Saberes.
"Espero que seja um começo", diz arquiteta que pediu tombamento de sítio charqueador
A reunião que decidirá pelo reconhecimento ou não do patrimônio cultural pelotense em nível federal é um desdobramento de uma série de ações pontuais realizadas ao longo das últimas décadas para preservar a memória de uma das mais importantes cidades do Estado.
O primeiro tombamento realizado pelo Iphan foi em 1955: o obelisco construído em homenagem a Domingos José de Almeida, por sua participação na Revolução Farroupilha. Em nível municipal, um dos primeiros marcos em termos de volume foi um inventário da década de 1980 que previu a proteção de mais de 1 mil imóveis. Atualmente, Pelotas possui um dos maiores acervos de estilo eclético do Brasil, com cerca de 1,3 mil prédios inventariados.
A elite intelectual da cidade esteve entre os principais defensores do patrimônio, principalmente, através de estudos da Universidade Federal de Pelotas, cuja Faculdade de Arquitetura elaborou o inventário municipal e outros cursos, através do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, elaboraram pesquisas que destacam o valor cultural e relevância histórica de diferentes aspectos do município.
Professora aposentada da UFpel, a arquiteta Ester Gutierrez dedica-se, desde a década de 1990, ao estudo das charqueadas na cidade. Depois de contribuir com um projeto da prefeitura para delimitar áreas de interesse cultural em Pelotas, ela foi, cerca de uma década atrás, a primeira cidadã a pedir o tombamento do chamado sítio charqueador, região às margens do Arroio Pelotas onde se estabeleceram dezenas de fábricas de charque. Em maio, poderá ter parte de seu pedido deferido: a Charqueada São joão, uma das mais antigas da cidade, está entre os setores que podem virar patrimônio nacional.
— Acho que é louvável, mas é uma coisa pontual. Espero que seja o começo de um processo de reconhecimento que permita ações de conservação mais amplas — avaliou a professora aposentada.