Em novembro de 2010, um Boeing 737-300 saiu do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com destino a Panambi, no noroeste gaúcho. Se tivesse voado até lá, já seria inusitado, posto que a cidade não tem pista para aeronaves desse porte. Mas o que de fato aconteceu foi ainda mais insólito. O Boeing fez os 390 quilômetros por via terrestre, percorrendo ruas da Capital e rodovias como a BR-116, a BR-386 e a BR-285.
Foi uma megaoperação, que envolveu dezenas de pessoas, interrompeu o tráfego e obrigou à remoção de fios e placas ao longo do caminho. Encarapitada em uma carreta, a fuselagem com 34 metros de comprimento atravessou o Estado vagarosamente, parando a cada 10 quilômetros para liberar a passagem de automóveis. Demorou três dias para chegar.
A questão é: por que Panambi?
A resposta está às margens do km 420 da BR-285. Cercada de lavouras de soja a perder de vista, materializa-se ali uma aparição que costuma espantar os viajantes: uma área de quatro hectares à beira da rodovia, visível de longe, tomada por aviões e veículos militares em quantidade suficiente para invadir e conquistar um pequeno país. O Boeing está lá, devidamente restaurado. É uma das atrações do Museu Militar Brasileiro, um milagre realizado por um homem de 60 anos chamado Sefferson Steindorff.
Ao longo das últimas três décadas, Sefferson adquiriu e pôs em exposição uma das maiores coleções de viaturas militares do país, totalizando cerca de 180 veículos, incluindo aeronaves, blindados, jipes, ambulâncias, caminhões para transporte de tropas e suprimentos, canhões, obuseiros, cozinhas de campanha, hipomóveis, reboques e carros anfíbios. Além das viaturas, o museu, bancado com recursos próprios, tem no acervo milhares de outras peças, muitas delas equipamentos usados durante a II Guerra Mundial.
Trata-se de um milagre por causa da origem disso tudo. Sefferson foi uma criança que bordejou a miséria. Construiu o museu como uma forma de gratidão por quem lhe deu um prato de comida naqueles dias difíceis. Natural do interior de São Pedro do Sul, perdeu o pai com dois anos de idade. A mãe transferiu-se com os quatro filhos para Santa Maria, acreditando que a cidade ofereceria uma vida melhor.
— Éramos muito pobres. Colonos xucros da roça. Achamos que íamos chegar na cidade e ia ser fácil. E não foi — conta Sefferson.
A mãe lavava roupa para fora, principalmente para soldados, e as crianças também tinham de trabalhar. As meninas faziam faxina. A partir dos oito anos de idade, Sefferson entregava jornal, engraxava sapatos, vendia picolé, rapadura e pastel na rua, percorria a cidade em busca de ossos, vidro e pedaços de metal descartados no lixo, para repassar a um ferro velho e garimpar mais uns trocados. Ainda assim, não era suficiente.
— A gente foi morar no meio dos quartéis. Os vizinhos naquela volta eram na maioria militares. Eles conheciam as nossas necessidades. Então, convidavam para ir ao quartel _ recorda Sefferson. — Nós íamos tomar café e saíamos alimentados. A escolinha municipal em que a gente estudava também era cuidada pelo Exército. A primeira coisa que fazíamos de manhã era buscar no quartel arroz, massa, carne, para fazer o almoço. Depois tinha a colônia de férias, quando a gente entrava de manhã e passava o dia. O mais importante era a alimentação, porque a gente tinha dificuldade de alimentação. Mas também tinha atividades, disciplina, regras. Essas coisas foram a minha maior educação. O meu conhecimento de ser gente, saber o começo e o fim, eu aprendi lá dentro. Aí fui me apegando, convivendo com os militares. Eles nos ajudaram na hora da dificuldade. Foi daí que ficou esse amor. O museu é uma homenagem a isso, é a minha forma de gratidão, um trabalho de preservação da memória das Forças Armadas.
Eles nos ajudaram na hora da dificuldade. Foi daí que ficou esse amor. O museu é uma homenagem a isso, é a minha forma de gratidão, um trabalho de preservação da memória das Forças Armadas.
SEFFERSON STEINDORFF
Criador do museu
Da infância na pobreza à condição de proprietário de um patrimônio valioso, o caminho é improvável, ainda mais se faltou estudo. Sefferson ia à escola, mas não aprendia, estava sempre cansado de tanto trabalhar, não completava nenhuma série. Foi alfabetizar-se na adolescência, via Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), uma iniciativa federal para tentar reduzir a taxa de analfabetismo no país. Depois, conseguiu completar apenas os dois primeiros anos do Ensino Fundamental.
Mas a infância coletando sucata acabou rendendo emprego no ferro-velho para o qual costumava vender. Entre suas atribuições, estava viajar pelo Rio Grande, amealhando material enferrujado. Conheceu Panambi assim, fez amigos e enxergou na cidade um potencial inexplorado. Havia uma forte indústria metal-mecânica na localidade — e ferro-velho nenhum. Aos 24 anos, casado, com um filho e um cachorro, pegou o caminhãozinho que tinha conseguido comprar e mudou-se para começar o próprio negócio. Passados 30 e poucos anos, a SS Recicladora de Metais é uma das gigantes do ramo no Estado.
— O pessoal pergunta: "O que tu és?". E eu digo: "Sou sucateiro". Comecei do zero. Comprava a sucata do pessoal, classificava, preparava, vendia e só depois eu ia pagar, porque no começo nem dinheiro para comprar eu tinha — lembra.
Naquele tempo, Sefferson acalentava o vago sonho de algum dia vir a possuir um veículo militar, possivelmente um jipe. A oportunidade apareceu lá por 1987. Em uma de suas incursões em busca de metal, bateu em uma granja no interior de Ijuí e deparou com um Dodge Commander em frangalhos, sem motor, sem pneus. Fabricado nos EUA em 1941, o veículo, um jipão para transporte de oficiais, foi muito usado durante a II Guerra. Depois do conflito, algumas unidades foram repassadas ao Exército brasileiro.
— Quando vi aquilo, me deu... Me deu uma emoção. Botei o olho: "Tenho de levar".
O dono, um idoso com problemas de locomoção, sonhava reformar o jipe e não quis fazer negócio, apesar da insistência. Sefferson foi embora. Mas não desistiu. Voltou com nova proposta e conseguiu adquirir a peça — a primeira da coleção. Com a viatura em casa, dedicou-se ao restauro, um processo que tomou seis meses. Sentia-se realizado.
— Para mim estava bom, no momento em que consegui o Commander. Só pensei em restaurar. Mas aí, quando terminei, veio aquilo: "Vou atrás de outro". Fui comprando aqui, comprando ali. Nunca sonhei em fazer um museu, só em colecionar, em adquirir. Fui acumulando. E, quando vi, deu nisso aí — relata, referindo-se aos pavilhões atulhados.
Ser dono de ferro-velho foi providencial na empreitada. Era comum aparecerem em lugares insuspeitos, em meio a outros tipos de metal retorcido e enferrujado, peças, equipamentos e viaturas descartadas pelas Forças Armadas. Examinando bem os editais de leilão, surgia algum lote com preciosidades. Além disso, Sefferson passou a arrematar em hastas promovidas pelos próprios militares, a montar uma rede de olheiros pelo país e a viajar em busca de itens. Em 2009, franqueou esse acervo, fundando a Associação Cultural Museu Militar Brasileiro.
O avião virou cinema
Quem visita o local — de 20 mil a 30 mil pessoas por ano — adentra por um pórtico ladeado por blindados e ingressa em uma área coberta sob a qual pende, do telhado, um avião Vecto Gerônimo 407 — uma das sete aeronaves da coleção. É recepcionado ali por música militar ou patriótica e por funcionários trajados de roupa camuflada. Ingressa, então, em um amplo pátio, onde a primeira parada costuma ser o Boeing trazido de Porto Alegre em 2010.
Sefferson conta que desejava ter um local para exibir vídeos e documentários, dentro do museu, e acabou por concluir que converter um avião para esse fim seria perfeito. Andava à procura de um exemplar, quando soube que havia dois Boeings 737 à venda na TAP Manutenção e Engenharia. Eram aviões que tinham vindo à oficina de Porto Alegre para revisões, mas a empresa proprietária quebrou. Fabricadas nos anos 1960, as aeronaves comportavam 149 lugares, pesando 20 toneladas cada. Sefferson comprou as duas.
A primeira delas, aquela que foi transportada em novembro de 2010, está convertida em biblioteca e sala de exibição. O compartimento para bagagem de mão foi transformado em estante e recheado de volumes sobre temas bélicos, para consulta de escolares. A metade traseira serve de sala de leitura, com mesas acopladas entre os assentos originais, posicionados de frente uns para os outros. A parte dianteira virou cinema, também mantendo as poltronas.
O segundo Boeing, igualmente transportado por via terrestre, em 2012, fica em outro setor do museu e foi adaptado para acolher artefatos militares, muitos deles usados pelos soldados da Força Expedicionário Brasileira (FEB) na campanha da Itália. Há estojos de primeiros socorros intactos, kits de barbear, fardamentos, munições, instrumentos de cozinha, binóculos, rádios, aparelhos de código morse e capacetes. Ao lado, encontra-se estacionado outro avião de grande porte, um Buffalo, turboélice canadense para transporte de tropas que pertenceu à Força Aérea Brasileira (FAB). Depois de 40 anos de serviço na Amazônia, voou pela última vez em 2007 e acabou aposentado. Sefferson foi comprá-lo no Rio de Janeiro, de onde a fuselagem, com 24 metros de comprimento, veio também por via terrestre.
Ainda no capítulo aeronaves, o Museu Militar Brasileiro exibe duas peças de tintas dramáticas: são os destroços de aeronaves da Força Aérea que caíram durante exercícios em Santa Maria. Colocados um ao lado do outro, consistem em dois montes de metal retorcido. O primeiro é um caça AMX que se despenhou na manhã de 25 de março de 2002 durante um treinamento. Os dois tenentes-aviadores conseguiram ejetar os assentos, acionar os paraquedas e salvar-se. O outro monturo pertence a um monomotor T-25 Universal, que tombou no aeródromo da Base Aérea, ao pé de um público de 25 mil pessoas, em 12 de outubro de 2003, quando fazia uma demonstração durante a Exposição de Aeronáutica (Expoaer). O piloto, tenente-coronel aviador Jarbas Alencar Dutra, 41 anos, morreu no acidente.
— Virou sucata, leiloaram e nós conseguimos comprar — resume Sefferson.
O prato principal do museu, no entanto, são as viaturas, dezenas e dezenas delas, de todos os tipos, em geral compradas em condição lastimável, restauradas e colocadas em exposição em estado de zero quilômetro. As raridades multiplicam-se. Junto a um hospital fluminense, o sucateiro adquiriu um dos cinco jipes soviéticos UAZ-469 que adentraram no Brasil. Da Receita Federal, que o aprendeu possivelmente como contrabando, comprou em leilão um jipe britânico Austin, talvez o único da América do Sul. Entre os jipes, ainda merecem menção um exemplar de fabricação argentina, de modelo utilizado na Guerra das Malvinas, e outro da Nissan, feito para o exército japonês, que Sefferson foi encontrar, a partir de uma dica, todo desmontado em uma localidade do interior de São Lourenço do Sul.
E há também uma infinidade de blindados — os populares tanques. Só do Stuart, usado na II Guerra e apelidado de Perereca pelos militares brasileiros, Sefferson comprou 18 unidades de uma tacada só, em Santa Maria. É tanta abundância que um M-41, viatura de combate norte-americana fabricada em 1950, foi serrado ao meio, para que os visitantes do museu tenham uma visão interna e longitudinal do veículo.
— Chamam a gente de louco. Dizem que é um assassinato do blindado. Mas está feito — diverte-se Sefferson.
Entre as peças preferidas dele, encontra-se uma ambulância Dodge WC 54, localizada em um ferro-velho de Bagé, que motivou pesquisas aprofundadas para o restauro. Fabricada nos EUA durante a II Guerra, foi usada pela FEB na Itália e veio para o Brasil na ocasião da partilha de equipamentos entre os países Aliados.
— Olha que coisa linda! Ela é diferente — baba-se Sefferson diante da viatura, com estepe incrustrado na lateral e macas da época.
O museu virou casa
Nos últimos tempos, para dedicar-se em tempo integral ao projeto de preservação da memória militar, o sucateiro abandonou o dia-a-dia da recicladora. Repassou o encargo empresarial a um dos três filhos, Jeferson Steindorf, 32 anos, que também é o mais ligado ao museu, dividindo com o pai o título de sócio-diretor. Jeferson participa do garimpo de preciosidades, mergulha nas pesquisas e responde por alguns dos cenários que são oferecidos à contemplação. Foi ele que montou, por exemplo, a trincheira onde se exibe um blindado Stuart a esmagar um Jeep de 1951. Para consegui-lo, efetivamente passou com um tanque por cima do veículo.
Criado em meio à coleção do pai, ele desenvolveu uma paixão semelhante e é a garantia de que o museu vai ter sobrevida. No mesmo caminho vai o filho de Jeferson, Caio, de um ano, que já saiu da maternidade com farda camuflada e delira entre os ônibus e caminhões militares do avô.
— Com esse sonho de preservação, meu pai fez um trabalho admirável e brilhante. Eu ajudo desde pequeno e cresci com o amor de dar continuidade, de dar sequência a esse feito, a essa história de vida — confirma Jeferson.
Apesar de ter residência oficial em um apartamento no centro de Panambi, Sefferson passa semanas sem voltar para "casa". Fica pelo museu mesmo, onde construiu, nos fundos, uma suíte e uma cozinha.
Praticamente moro aqui (no museu). No ano passado, não deu 30 dias em que dormi em casa. É direto fazendo, não tem sábado, domingo, feriado. Dá para dizer que é a minha vida. Então, acabo ficando sempre aqui
SEFFERSON STEINDORFF
Sobre a vida dentro do museu
— Praticamente moro aqui. No ano passado, não deu 30 dias em que dormi em casa. É direto fazendo, não tem sábado, domingo, feriado. Dá para dizer que é a minha vida. Então, acabo ficando sempre aqui — conta.
A mulher, Dionete, 59 anos, achou melhor acompanhar. Se é para permanecer no museu até alta noite e ter de voltar cedinho no outro dia, para estar com o marido, também prefere dormir por lá. Mas reconhece que não tem o mesmo fôlego de Sefferson — nem grande interesse pelos temas militares:
— Ele nunca cansa. Acorda de noite, não dorme, fica trabalhando com a cabeça, sem sossego. Sempre pensando o que fazer no museu. Aí levanta e vai programar as coisas dele. É do tipo que vai, vai, até que consegue. Ele tinha de saber que precisa parar um pouco.
O QG desse general da preservação é nos fundos do museu. Ali, em diferentes salas, o homem alfabetizado pelo Mobral mantém uma biblioteca bélica, incluindo manuais raríssimos das viaturas, que lhe valem consultas de colecionadores. Ele e o filho gastam tempo estudando essa bibliografia, que serve de guia no restauro de peças. Essa ala é cheia de artefatos que não estão em exposição por falta de espaço — algo que deve mudar, porque um novo pavilhão, com paredes revestidas de estojos de munição, está em obras.
Mais para os fundos, fica um impressionante depósito, alas e alas repletas de componentes de máquinas militares. Há um blindado enferrujado, um avião Bandeirante que pertenceu à FAB, velhos caminhões do Exército e dos Bombeiros e um par de jipes restaurados. Um compartimento gradeado está repleto até o topo com dezenas de velhos capacetes. Essa é uma espécie de reserva técnica e setor comercial. Para montar uma única viatura, Sefferson em geral tem de comprar vários exemplares no estado de sucata. As sobras — e também alguns veículos repetidos — ele separa para vender a outros colecionadores. Tem um pátio quase do tamanho do próprio museu só com carcaças de carros militares — que, a partir de uma ideia de Jeferson, fazem sucesso como cenário para fotografias de noivos.
Esse comércio ajuda Sefferson a pagar as contas do museu — um empreendimento deficitário. Ele diz que a arrecadação com bilheteria cobre os custos com os oito funcionários. Mas como está sempre adquirindo novidades e ampliando o museu, as despesas são mais vultosas do que os ingressos.
A localização é um problema. Aficionados do mundo inteiro e de diferentes partes do Brasil se deslocam até as lonjuras de Panambi, uma cidade que sequer quartel tem, às vezes permanecendo dias no museu, para conhecer as relíquias que o sucateiro conseguiu amealhar e para fazer pesquisas. Militares também viajam ao local, chegam em excursões, inclusive como parte de cursos de formação. Mas o público em geral mais ou menos desconhece a instituição. Picos de visitação são registrados durante o verão, quando argentinos em viagem para o litoral brasileiro deparam com a aparição em meio aos campos de soja e desembarcam para conhecer.
— Vamos ter de achar uma forma de fazer isto dar dinheiro. A dificuldade é que estamos em uma região ruim para o turismo. Trazer gente não é fácil. E os custos só aumentam, até porque a gente não pode ver nada pra vender que já tem de comprar... Aqui vai pro labore, vai tudo e mais um pouco. É por amor, a gente mantém por amor — diz Sefferson. — Nunca parei para pensar no que gastei. Mas sei que 99% de todo o material de uso militar no Brasil vira sucata. Então, se eu não tivesse comprado, tudo isso tinha se perdido. Tinha virado prego e parafuso.