O avanço das dunas sobre construções no litoral gaúcho não é algo recente. Nauri Ferreira, 56 anos, por exemplo, há 25 trava uma luta para manter de pé sua casa de veraneio na praia de Quintão, em Palmares do Sul, no Litoral Norte. Ao menos duas vezes por ano, o pedreiro se dedica à manutenção necessária para manter a construção. Seus aliados nesse combate são uma pá e um carrinho de mão. Durante três ou quatro dias seguidos, ele trabalha retirando a areia que se acumula aos montes na parede lateral da casa.
Ele afirma que viu muitas mudanças no local ao longo das duas décadas e meia, como construções vizinhas sendo abandonadas devido à destruição causada pela mobilidade das dunas.
— Se a areia não é retirada, ela se acumula e pode chegar na altura do telhado da casa. Com o peso do monte que se forma, a parede ou até mesmo o telhado tomba e, com isso, muitos proprietários acabam abandonando a construção — explica Ferreira.
As intervenções urbanas no litoral gaúcho não são as únicas causadoras das alterações na paisagem, mas são responsáveis por intensificar condições que já são naturais da região. De acordo com estudos da área, algumas dunas da região avançam a uma taxa de 10 a 20 metros por ano no sentido do continente. Essa mobilidade e a sua naturalidade ficam evidentes em imagens de satélite que mostram as mudanças ao longo dos anos em áreas do litoral com baixa urbanização.
Um dos motivos naturais para a mobilidade das dunas é justamente a localização do Estado, que favorece a formação de eventos meteorológicos intensos, como explica Rogério Rezende, meteorologista do 6º Distrito do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet):
— A gente está no caminho da formação de alguns sistemas meteorológicos, como de baixa pressão, que vêm do norte da Argentina, frentes frias, que vêm do Uruguai e Argentina varrendo o Estado, e também de complexo convectivo de mesoescala (CCM), que geralmente surge no Paraguai e migra em direção ao sul do RS. Então, a gente pode dizer que estamos em um corredor de sistemas meteorológicos que podem ocasionar tempo severo e favorecem a formação de ventos — diz o especialista.
Essa condição meteorológica intensa se comprova pelos números da Defesa Civil. De acordo com dados do órgão nacional, somente no litoral gaúcho, entre 2003 e 2022, foram registrados mais de 70 desastres relacionados a ciclones e vendavais.
— Os ciclones geram vento que aumenta a mobilidade das dunas. Além disso, muitas vezes a mobilidade das dunas fica facilitada pela ação humana, como (quando ocorre) a destruição da vegetação que deixa a areia solta e possibilita que ela avance em direção ao continente mais rapidamente. O ciclone, intensificando a ação das ondas, também gera o problema de erosão costeira, ou seja, destruição de propriedades públicas e privadas — explica o pesquisador em geologia marinha do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (Ceco) e professor do Instituto de Geociências da UFRGS Sérgio Dillenburg.
Muitas vezes a mobilidade das dunas fica facilitada pela ação humana, como (quando ocorre) a destruição da vegetação que deixa a areia solta e possibilita que ela avance em direção ao continente mais rapidamente.
SÉRGIO DILLENBURG
Pesquisador em geologia marinha do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica e professor do Instituto de Geociências da UFRGS.
Mudanças no cenário
Não é somente pelas manutenções ao longo dos anos ou as casas abandonadas que o pedreiro Nauri Ferreira afirma que o avanço da areia é constante. Isso porque as mudanças no cenário da região vão além. Entre a residência de Ferreira e o mar havia uma lagoa natural que, com o acúmulo de areia, virou um córrego.
— Antes formava uma pequena lagoa que desembocava no mar. Não era grande, mas eu até conseguia pescar. Só que agora, com o avanço da areia, é um córrego e a pesca diminuiu, agora só se encontra peixes pequenos — revela.
Além disso, o pedreiro comenta sobre as ações humanas que também afetam o cenário. A vegetação rasteira, que é essencial para segurar as dunas, também vem mudando. Conforme o seu relato, todo ano a situação muda de acordo com os caminhos feitos para acessar a beira da praia.
— Por exemplo, já vi pescadores utilizando trator para ir até a beira e a passagem do veículo foi destruindo a vegetação — relata.
Conforme Sérgio Dillenburg, o avanço das dunas sobre o continente e o assoreamento de lagoas costeiras acontecem há milhares de anos.
— O que o morador do Quintão relatou é que existia um corpo d’água e que o avanço da areia das dunas foi preenchendo. Isso é algo absolutamente comum, e que vem acontecendo ao longo da nossa região costeira já há pelo menos 5 ou 6 mil anos. Inclusive, algumas lagoas costeiras já não existem mais — explica o pesquisador.
Além do trabalho de retirar e carregar a areia para longe da sua casa, o pedreiro também tenta ajudar a segurar as dunas, com medidas que estão ao seu alcance. Após a limpeza no terreno, Ferreira espalha em cima dos montes de areia uma espécie de palha que, com o peso, auxilia na prevenção da mobilidade da areia.
Alterações no ecossistema
Apesar de a mobilidade das dunas e o assoreamento das lagoas costeiras serem processos naturais, o ecossistema está sendo prejudicado. E isso se deve à presença humana e a urbanização das regiões litorâneas que têm acelerado a velocidade desses processos.
— Quando vem o ser humano e retira a duna para construir um prédio, não tem tempo de o ecossistema se adaptar, é tudo instantâneo. Eles (os ecossistemas) têm um poder de adaptação, mas, para isso, é preciso um ritmo lento. Quando são feitas mudanças muito rápidas, se perde todo o ecossistema — explica João Luiz Nicolodi, pesquisador do Grupo de Ações Integradas em Gerenciamento Costeiro, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
Essas mudanças aceleradas colocam em risco de extinção diversas espécies de fauna e flora, como o roedor tuco-tuco, que tem as dunas como habitat natural, e uma diversidade de gramíneas. Além desses, as alterações aceleradas do ecossistema também trazem riscos à própria população.
A ocupação do litoral, muitas vezes, vem acompanhada da destruição do cordão de dunas, que é um importante sistema de segurança do continente. A circulação de pessoas e veículos sobre as dunas destrói a vegetação, responsável por segurar a areia no local e possibilitar a formação das dunas frontais.
— A duna frontal tem um papel extremamente importante. Ela é um dique natural que protege a área continental de uma inundação, de uma ressaca, de uma elevação do nível do mar. A urbanização diminui a área de vegetação e deixa o continente mais exposto às consequências dos fenômenos meteorológicos — detalha Dillenburg.
Em contrapartida, a urbanização auxilia a preservar as lagoas costeiras. O assoreamento desses locais é registrado, principalmente, em áreas menos urbanizadas, onde não existem construções que dificultam a circulação do vento e impedem que a areia chegue até as lagoas.
Eterna batalha
Para o pesquisador Nicolodi, a ocupação humana do litoral é marcada por um conflito.
— A gente quer que esse ambiente esteja estável, só que a zona costeira é o ambiente menos estável de todos. É onde a situação mais muda de figura, de formato, e o tempo todo. Então, é uma eterna batalha entre essa necessidade humana de estabilizar as coisas e uma região que é naturalmente muito dinâmica.
Além de pesquisador e professor da Furg, Nicolodi também trabalha com planos de ordenamento de territórios, que incluem o manejo de dunas, junto ao Grupo de Ações Integradas em Gerenciamento Costeiro. Através de estudos, ele busca apresentar, junto aos municípios, caminhos para equilibrar a relação entre o ecossistema litorâneo e a urbanização.
— O ser humano interfere, indiscutivelmente, no meio ambiente. O impacto da nossa interferência pode ser positivo ou negativo, depende da gente, do que a gente faz. Nós não temos que deixar de ocupar, mas é preciso modificar essa dinâmica que, infelizmente, tem sido majoritariamente negativa — alega.
Dentre os caminhos apontados por planos de manejo de dunas está o fortalecimento das espécies nativas de flora, através do seu plantio e da remoção de espécies exóticas, conscientização da população e criação de passarelas para evitar que a vegetação seja pisoteada.